terça-feira, 29 de dezembro de 2015

Sobre o último jardim e outras medidas



Flores que nascem das pedras


A ordem é recomeçar cada manhã
com a simplicidade tenra de uma rosa,
aquela que não questiona sua condição
 de refém num amplo jardim 
como prisioneira de outras cores
ou mesmo o firme corpete de espinhos
durante seu tempo de vida útil embaixo do sol.

O húmus é cego e justo.

Enquanto o perfume de cada pétala
emite um valor essencial em notas e aromas,
a flor em si não sustenta rótulos ou preços
pela ascensão unânime de sua natureza bela...

Ela existe.
Essa cotação definitivamente não conhecemos.

Entra-se pelo pórtico do jardim
com os bolsos vazios de sementes,
 por isso a entrega é íntegra e resoluta
e a rosa fica assim, ela mesma
sendo o próprio jardim traduzido numa única pétala.

É a rosa que mantém meu coração
batendo seu ritmo de cristal,
por ela todos os poros se respiram outras flores
e a cadência íntima de existir atento
permanece isenta de qualquer outra estação
que não seja agora.

Calo se as palavras saltam em efêmeros,
para conjugar então o puro silêncio das hortaliças
e esperar as porventuras das sementes expostas de um último verão.

Mas a simplicidade da rosa que surge todos os dias
ainda que seja a mesma flor no mesmo canteiro
tem que valer todo um jardim
e seu tênue virtuosismo
abraçar um céu inteiro!

Sobreponha-se sua virginal inocência
à raridade das orquídeas que comovem Hollywood.
Para a justiça do húmus
todas serão apenas flores:
puros sonhos de clorofila
que desconhecem holofotes
ou o farfalhar de ramalhetes nos celofanes,
expressões do mesmo solo
transmitido em símbolos diferentes
na impermanência bela de um único destino.



segunda-feira, 21 de dezembro de 2015

O Teatro Clarividente



Índex

Tudo desenhado desde sempre como num calmo teatro...

É preciso trazer leveza aos bastidores
porque a alma emana dos personagens
e converge para um único reflexo.

Ele chega em raios à fronteira da ribalta,
onde respiram num mesmo ritmo
foco central e audiência.

A gravidade do mundo perecível não alça voos.

Um louco então grita das coxias:

- "Quando Deus vier, que seja de viés
incidir sua luz diretamente no meu peito
e me livrar dessa catraca e da ferrugem 
de uma vez por todas!

Meu interesse de antemão em luto armado!

Paguei meus ingressos e meu resgate
e foi ninguém mais que eu mesmo o raptor."

Silêncio.

Mesmo as mais altas intenções
estão cercadas de anjos caídos ao redor.
Por compaixão ao seu resgate
e à reeleição de suas asas derretidas
a luz existe e emana dos olhos
daqueles que não dormem.

Mas o exercício de viver a cada instante
de olhos abertos
pesa nas retinas da carne
porque é feito do mesmo gosto incondicional do limite
- daquele que todos nós comungamos.
E da mesma forma e pela mesma lei
nosso múltiplo ser 
não projeta senão uma única sombra.

O limbo arde nas mandíbulas
e inevitavelmente
a fome incomensurável de luz emerge dos tutanos.

É então que um palco se define
ainda que lhe falte um texto e um ponto:
Impronunciável drama.

Não há efeitos especiais para a dor.

Abrem-se grilhões em febre de asas.

As máscaras estão emancipadas.

Arlequim e Pierrô são agora um mesmo e único palhaço
quando o circo pega fogo.

Cortinas