quinta-feira, 23 de dezembro de 2021

Reza

 


Reza


E continuaremos destilando o universo a partir de uma gota de luz,

separando o joio do trigo enquanto assamos os pães para os famintos,

celebrando o voo dos pássaros que partiram

ao trazer um olhar cúmplice pelos que ficaram passarinhos.


De nosso mesmo, só a viagem e o fardo. Eu carrego tudo em versos

e deles estou pronto para me despir quando vier minha epígrafe.


Das tempestades, trouxe os raios que revelam

tudo num vislumbre antes de mais nada

e permaneço depois da chuva espessa a olhar a vida ressurgindo fresca,

tenra e úmida como se acabasse de nascer da terra.


Minha súplica é por um céu intraduzível que me alcance

para que eu me confunda uma vez mais em sua esfera

num silêncio eloquente de mil vozes sem legendas

e um gesto luminoso completamente sem ruídos

ou marcas no caminho.


A vida pode ser tudo,

menos intransponível.



domingo, 21 de novembro de 2021

Sinai

Sinai


Pela perspectiva do deserto imerso no mar,

tudo é uma questão do azul ultramarino no horizonte

ao verde quase translúcido contando ondas serenas

em longas pautas ao longo da praia cerzida de pedras.


Eu trouxe um abismo para contar nos dedos

da superfície alta das montanhas distantes

onde um perfil de céu se esconde recortado

entre neblinas e luzes

enquanto um navio de presságios cruza a paisagem.


Meu coração se partiu como o mar de Moisés

buscando oceanos de compreender

essa redução de felicidade a conta-gotas

que os faraós oferecem como o óbolo

de uma matéria proibida pela censura.


Eu sou o lugar onde o deserto beija o mar

e ambos se esquecem deles mesmos

para incondicionalmente se perderem na substância um do outro

sem avisos, sem tempestades ou turbilhões

que não o mais puro amálgama

de algo que se move nas entrelinhas criando paisagens marinhas

por onde mergulho em busca dos versos trôpegos junto aos peixes.


Ergui catedrais sem paredes

para que a memória de Deus atravessasse a nave sem reservas…




segunda-feira, 9 de agosto de 2021

Vórtex

 


Vórtex


Réus inocentes de um mesmo sudário

que o emblema do tempo não absolve nem prescreve,

todo silêncio é uma cruz que não conhece gritos.


Máscaras passam

ocultando cicatrizes do que um dia foram risos

condenados agora à burca de uma hecatombe estática

que ninguém pôde prever em sortilégios ou malefícios.


E até que o mosto dessa eucaristia seja decantado

o vinagre do mundo se acreditará a própria uva.


Resta-nos esperar que um mar enfim se abra

em passagem de redenção por entre conchas e areia

revelando a travessia em chão de estrelas

pisando um vinho que ninguém jamais provou.


Enquanto isso, nas patas dos demônios tudo vira capacho

e Deus é reduzido a uma blasfêmia!


Mas aqui...

Os ciprestes continuam apontando obeliscos

para a única resposta possível: O Alto.


Então a sede de redenção que engole a seco seu perfume

canta toda a aridez por fora com o oceano por dentro

e seu silêncio é uma cruz inevitável atravessada na garganta

concebendo um tsunami sem parâmetros nem fronteiras.





terça-feira, 16 de fevereiro de 2021

Mandrake

 

Mandrake


O existir, esse rio que passa seu destino amargo

de pão ázimo entre estrelas e estigmas

sem revelar foz ou nascente, apenas travessia...


Hologramas de pedra, os faraós de Abu Simbel

não sobrepujaram o nascer do sol

na areia branca do deserto da Núbia.


O mesmo sol que a seu próprio modo

abriu veios de luz pelos corredores dos templos

e que eu não dei fé...


Quando acordei do sonho,

as paredes reverberaram reflexos

que jamais pude prever em qualquer vigília.


Sua ignição queimou minhas pegadas

e não encontrei de imediato a saída desse labirinto.

Tateei então sobre as cinzas do tempo

até surgir minha própria clarividência,

cega e livre de todos os vestígios para voar.


Mas isso foi muito tempo depois

quando aprendi finalmente que em todos os capítulos

havia sempre uma fada escondida

para cada lição invisível.


Não fosse o condão,

heróis, príncipes e princesas

nada mais seriam que anônimos

de páginas potencialmente ilustres.


Cabe ao preço das cicatrizes

o voo da fênix que nem vento desfaz.