domingo, 25 de agosto de 2013

O Jardim Secreto






O Jardim Secreto


Meu jardim sofre com o calor intenso do verão,

com o sufoco das horas suspensas

sobre um tapete quente de folhas e sol,

dias abrasantes em que o oxigênio é quase uma miragem

envolta pelo anseio de uma nova estação que se respire.


Ser flor numa terra árida

é ter o compromisso de trazer o belo

seja em meio aos cactos ou às pedras.

É não ter escolha sobre a isenção de espinhos

ou a graça da chuva todos os dias.


Ser flor numa terra árida

é apenas desejar o sol por destino dentro

e a noite como leito num suspiro momentâneo.


É esperar todos os dias

por uma próxima canção

que traga suavemente

o vácuo de uma melodia intraduzível,

a massa lêveda do pão ainda por ser cozido,

o cozinhar a si mesmo a pleno vapor

lido num livro de receitas impenetrável

que ensine como a fórmula dos doces,

salgados e amargos

pode conter o que o fado impôs por descuido, por recurso

para que dali um banquete vazio seja feito

a fim de aplacar as leis invioláveis sobre o sabor.


Paisagens efêmeras

e contos mal estabelecidos

aprendidos de não sei quem.


Resta uma chuva por comemorar

ainda que ela não venha,

ainda que o voo dos morcegos na lua cheia

atravesse esse satélite como um vulto,

ainda que a memória espessa de tanta escravidão

grite o silêncio esperto de tanta algema,

de tantos grilhões ainda por conquistar,

tanta sereia por atravessar ao largo de Circe

com os ouvidos velados à ilusão e malícia do bel-canto.


Era uma vez um jardim secreto

onde uma flor transparente respirava

sua composição de clorofila em belo refletida

só para terminar sua existência visível em questão de horas,

e continuar seu ser além do tempo-flor,

num segredo murmurado para o qual não há respostas.


Assim uma Dakini veio e me contou.





terça-feira, 20 de agosto de 2013

Duas Baladas para Arthur Rimbaud



Hinos ao Sol

                                                       a Arthur Rimbaud

I


Sua clarividência que me atravessa

lê impiedosamente cada esquina da minha alma.


Não há segredos à contraluz do que é revelado.


Cantei a saga de cada amanhecer.

Da Morada do Sol a Abu Simbel,

de Karnak ao Golfo de Ácaba.


A luz era sempre a mesma.

Era eu quem vivia no escuro.


Cada milímetro de eletricidade,

um compromisso com o infinito,

cada sopro de vento

um beijo atirado às pedras do deserto.


Mas nenhum afeto fica sendo em vão.


O que restou do tempo que não volta

é essa testemunha incandescente,

uma resposta às tardes mornas de Araraquara

cheirando a doce de laranja e cana-de-açúcar,

da poeira vermelha de Santa Fé do Sul

que tingiu minhas meias,

das praias desertas e calmas de Florianópolis

e da areia sanguínea da Jordânia.


Olhar para o alto é sempre a maior esperança,

a afirmação da luminosidade sempre presente

mesmo quando a noite vem para delimitar sua hora e passagem.


Sol de todas as noites,

de todos os amanheceres, Pai de Todos!

Lembrança única de toda uma vida,

testemunha imutável e silenciosa queimando minha pele e meu sono.


A vida na Terra proclama teu brilhante jugo

como um incenso que sempre se eleva e te alcança!


Tudo o que brilha é um modelo do que és.

Dos incas aos astronautas,

dos arquétipos mais indecifráveis

aos olhos da criança que passa feliz

e que faz com que meu coração

também brilhe a extensão de toda a rua.


II


Oráculo


Li por acaso os cacos deixados

pelo último motim

dos meus santos infiéis,

já em iconoclastas convertidos.


Em búzios adivinhei o som do mar

num evidente oráculo.


Enigmas que vêm à tona decifrados

para que nada mais seja passado a limpo.


Fosse a vida inteira vista num relance

e a vastidão tomada como uma dose de lucidez

em face à quietude espessa de um planeta!


A eternidade resumida num café expresso

e alguém que possa interpretar-lhe a borra

para resumir o calvário na compreensão de um sorriso.


Sol que queima e confunde

para examinar a frieza até então exaltada

no meu coração adormecido.


Um poema que quer falar por si

contra mim que não sei dizer nada.


Um silêncio que se traduz entre meus dedos

enquanto ferve o óleo em minhas pinturas.


Cor transmutada em abismo.

Receio imposto ao itinerário não traçado.


Resta apenas o batom estampado em beijos nas paredes

deste corredor que me leva não sei onde.


Não há sequer memória.

Qualquer paisagem é uma resposta.

Qualquer cartão postal o mesmo que as esfinges.

Chegamos somente até onde o destino impôs

já que nunca entendemos mapa algum.


Fração a que chamamos vida!

Eternidade emitida num único suspiro:

um piscar de olhos de Brahman

onde toda a história da humanidade pode estar contida.


Sol que cega clarividente para depois esclarecer,

não é possível entender num átimo as consequências da luz

sem antes sofrer sua ausência,

sem antes ralar os joelhos no chão

para só depois aprender a manter-se em pé:

soldado a postos para uma luta atenta e sem armas.


Cor transmutada em abismos

num salto de paraquedas,

a compreensão dura poucos segundos

para deixar somente a percepção de um plano de voo

e expressar numa outra condição

esse exercício de ousadia fugaz.


Para poder finalmente entender a delicadeza dos seres alados

que também aprenderam a lucrar sobre a massa de ar quente,

que trouxeram a seu destino-pássaro

a inteligência aérea e necessária

para voar sem dor sobre a imensidão do vale.





sábado, 3 de agosto de 2013

O Caderno Azul de Hiroshige




O Jardim de Borboletas e a Criança Extasiada


Eu queria um jardim com vista para o precipício

para confirmar a profundidade a esmo a cada dia

ser fausto em dia de borralho

com o demônio em meu encalço

para propagar um destino de cinderela ao fim da história.


Eu queria colher minha discórdia

na forma de acordes dissonantes – um dia eles passam –

só para poder depois brincar de índio nu em dia de domingo.


Fui um dia às touradas

e ali não havia nada.

Só cornos de mim mesmo:

ser touro e ser toureiro!

Ser nada!


E se calhar com o fado

ainda me faço audiência

para concluir essa charada do destino

diante da ausência de alguma possível conclusão nesse confronto.


É uma pena

que o animal transborde os limites da arena

para depois se instalar crescente

em meio à massa dos meus dinossauros

e querer ditar as regras a esta criança

que de tudo sorri

soberana, invisível, divinamente indomável.


Charada


De trás pra frente fiz assim:

conjuguei todas as rimas e o avesso,

no que era torto pus um fim

e recriei tudo outra vez desde o começo.


O que era cedo voltou tarde

e os pierrots fascinaram os arlequins com seu charme.


Ali os contos de fadas tinham código de endereçamento postal.




Poente


Um oásis a cada momento

e um deserto inteiro por conquistar logo em seguida.


Sempre os dois lados da mesma moeda a Caronte

mentindo sobre a unidade de todas as coisas.


Mas eu sigo porque meu destino é pássaro

e todas as portas estão abertas.


Também as feras, que não medem distâncias,

estão soltas, já que as jaulas derreteram

perante os 42° deste verão que ainda não passou.


Estou ou não estou

livre da Lei da Gravidade?


Por meu destino de almirante, tragam-me o mar já de volta

para eu atravessar num golpe, imune à pirataria

mas poeta iludido voluntariamente

por toda sereia que surgir em meus ouvidos.


Eu quero um sol de fim de tarde

para legitimar o incêndio dos meus sonhos pelas nuvens.

Depois tudo passa. Somos cinzas...

Mas só porque antes um sol queimou seu combustível

e imolamos as ilusões em sacrifício.


Sintonia entre os astros e os homens,

nossa única condição é a perda.

Convencer-se disto

é este pedaço de régua a que chamamos vida.

A extensão dessa medida cabe num sorriso de luz,

tão fugaz e preciso quanto o giro de um compasso.



Puzzle


Queria incendiar as palavras

para que elas queimassem fundo no seu coração

de poeta adormecido

e tivessem o calor de mil sóis brilhando

no limite de um único entardecer.


Os verbos se calam

perante a visão do vale e de seus verdes,

diante da amplitude e silêncio

de cada pequena flor que surge quando amanhece.

Outra vez sou poeta de tempo algum

e meu exercício diário

é brilhar novamente por uma nova manhã que surja infinda

exatamente como no primeiro dia dos mundos.


O recurso de métrica e rima não justifica

o desejo e a paixão que latejam

o pulsar atento de nenhuma conclusão. Nada permanece.


Acordar ainda se parece com a última canção de ninar aprendida.

Navio sem nome, rumo ou discórdia,

não há faróis em alto mar!


Como falar do compreender mudo que me trazem as histórias?

Como acordar da hipnose de mim sem o remorso de tanta coisa por ser feita?

Quanto valem as esfinges de plantão sobre a minha lápide?


Não há neste paraíso um único anjo que me indique as portas,

nem eu mesmo trouxe os óculos necessários

para suprimir a miopia da paisagem

e alterar a perspectiva do que é luz ou trevas em meu campo de ação.


Mas a total visão do vale

acende como um raio a amplitude do que há para ser visto,

assim como numa tempestade noturna

que em segundos, num único raio, revela para sempre

a dimensão atravessada do que antes era pura noite.


E já não há noite, tarde ou dia.

A memória alcança uma fronteira onde o silêncio impera imediato.

Perceber torna-se um verbo para sempre conjugado

e nas entrelinhas pode-se ler a eternidade composta por monossílabos.


Deus entra agora pela porta da frente

suave, saído de um banho de lavanda e alecrim

e senta-se à mesa que preparei para seu desjejum

alegre e perfumado, como todo universo sabe ser.



Ramadã

Beijei meus desertos
para afrontar a sede de amplitude
e ruminar o tempo dos camelos de uma vez
atravessando distâncias num átimo.

Mas não deu certo.

Era estreito o que deveria ser amplo
e uma porta sempre dava em outra.

Então eu deixei.
Não pensei mais em medidas
e rasguei todos os calendários
para ficar só com os finais de semana
no quintal da minha Vó Maria
onde fui príncipe, cowboy e índio:
enciclopédia de sonhos solta num playground.

Tempos depois
quando só sabia contar nos dedos
e tomar um avião era nada mais que brincar de amarelinha,
entre um céu e um inferno de fim de tarde
vi que a vida era pular para dentro da primeira chance
feito um saci de primeira viagem
tentando se esconder de coisa alguma.


Berço

Eu quero abraçar o deserto
para alcançar a fome depois do banquete
e pedir pelo conteúdo dos espaços em branco
preenchendo as tranças do tempo com Contos de Fadas.

Eu quero abraçar o deserto
para contradizer os espaços em branco
e afirmar que o coração é a única medida
e que só ele alcança o impossível.

Eu quero abraçar o deserto
porque não quero ser curto nem opaco,
construir pontes na neblina
e ver que à medida que as horas passam
novos dias querem dizer, incertos,
que faltam segundos para trocar as lentes
e contradizer a paisagem local,
virando o dia pelo avesso.

Porém,
reconstruirei pedra sobre pedra,
juntarei uivando todos os meus cacos
denunciando que a tal queda
era apenas ficar distraído
encostado no batente
deixando passar o tempo,
passando a vida a limpo, de rastros
me carimbando torto pelo chão
a chamar os cães plantonistas para decifrar o enigma.

E saber da dor cáustica
de ter de continuar respirando
e comendo o pão que o diabo amassou
se eu também sei fazer pães...

E se não existe coerência nisto
é porque vale ainda que como um grito,
mesmo que ele diga aos surdos:
- Abram alas para os cegos
e ouçam o roer dos mudos!
Absurdo!

Mas não vale um poema a estas alturas do campeonato,
o jogo tem se tornado demasiadamente fútil
além de já terem dito e escrito quase tudo.

Por isso, deem asas à imaginação.
Depois, joguem adubo nos parques!

Assim, aparecerão – depois da chuva, é claro –
novas formas de enfrentar o luar.

Deus finalmente dançará com as crianças
transformando o pavor trôpego
no puro ritmo a devorar espaços
que existe nos balanços
e no coração que oscila:
Pêndulos em parques diferentes...

Permitem jardins
ao redor das indústrias e automóveis.
                                                           1985


Perdido

Construo versos que você não pode ouvir
perco beijos que o acaso tem negado
por querer simplesmente o amor em vez da rima.

É como entrar num quarto errado
e mesmo assim trocar completamente a mobília,
pintar as paredes e quebrar todos os espelhos
para depois evadir-se na noite
empenhado até o último
em dirigir somente na contramão.

Voo todos os esquadros
para apontar arestas nos desertos,
e não conhecer seu silencio velado.

Passa um fado pelo meu coração perdido,
apenas uma gota de suor já lateja um Oceano
seguindo o pulsar de um poro íntimo com seu ritmo sempre aceso.

Eu enfrento a surdez do tempo
porque agora o silencio é absoluto,
apenas guardei segredos
para ter o que contar a mim mesmo.

Não sei gritar para pedir indicações,
o único endereço que me importa é o do Paraíso,
tudo mais é dantesco e labiríntico,
a conclusão sempre termina num minotauro
com Ariadne não sendo convidada.

De que valem tais contos de fadas?
Já não tenho mais moeda que compre sonhos.
A queda dos anjos é igual a um colapso
na Bolsa de Valores.

Meu resgate é minha perda,
sequestro-relâmpago pelo qual pago e recebo.
Tal é a impermanência.


Porto

As portas estão abertas,
apontam em silencio o dia e a hora.

Feito um arco-íris eu entro,
quieto,
imparcial sobre as formas:
Resignado sem-tempo.

Afrontam-se os canhões da cidade sonolenta.

Sonâmbulos
eles apenas dissolvem-se.

Eu abraço o Oceano
assim como abraço os desertos
e as estrelas em noites sem lua.

Faço o possível
para cumprir o impossível do tempo:
Cada momento é prova do imediato,
cada voo rasante o universo num piscar de olhos.

Saio da penumbra
e já vislumbro o farol com o qual sonhei.

Calo quando tento
descrever o alto mar que me atravessa.
                                                      

       
Mudo por dentro

Eu queria uma canção de amor
que abrisse a porta dos desertos
e escancarasse as janelas de uma vez por todas.

Mas não foi possível.
Eu não tinha as rimas
e não havia solo onde se erguessem
alicerces de propósito.

Os instrumentos emudeceram
perante a estranha coincidência
entre os pássaros da floresta
e os ventos das montanhas quando se calaram.

Não havia movimento.
O sol era um enigma
e a noite uma eternidade,
um poema sem fim nem conteúdo,
mágico chão de estrelas
com pedrinhas de brilhantes.

Queria na verdade um amor em forma de canção,
um beijo aberto ao enredo
do exílio no seu peito.

Um amor deserto
que restabelecesse a música dos ventos
aos sopranos pelas encostas e penhascos
onde só as águias alcançassem,
da mesma matéria-prima que constrói pirâmides, esfinges
e sentimentos desregrados.

Um amor é sempre um quebra-cabeças
lido pelo contrário
numa caligrafia organizada mais para o conflito
que para a solução
e ainda assim é o único sentimento que pode expressar tudo
ou selar o percurso tanto do sangue
quanto das estrelas.



A rosa púrpura

Uma certa rosa pediu à fada dos lençóis
um leito de púrpura por apenas uma tarde
para que pudesse descansar de seus espinhos.

O Tempo ouviu calado o encantamento
e esperou até que amanhecesse.

Quando veio o Sol
(e o Dia era lindo na Primavera!)
a rosa chorava triste,
despida e simples no meio do jardim pleno de luz.

Ao longo de seu caule nu
todas as borboletas, besouros e escaravelhos
vieram tocar de perto sua pureza inédita de flor.

E o peso de tantos insetos vergou sua nudez
impedindo que ela olhasse para o Alto à procura do Sol.

Inconformada, a rosa pediu de volta
seu espartilho de espinhos,
desta vez como se eles fossem escadas que libertassem,
elevadores a jato sem precisão alguma de ascensorista.

Compassivo, o Tempo concedeu-lhe outra vez o encanto.

Depois, em seu hálito de cravo
ela sorriu resignada seu destino de flor
como se houvesse provado de todo néctar
que a dor de seus espinhos a fez compreender então.

E ela foi, desde ali
flor de todo Jardim
e como se fosse ela, a rosa,
por assim dizer o Jardim inteiro
para todas as Manhãs, Espinhos e Perfume.
Rosa somente. Sem rosa, cor ou desejo:
Eclesiastes de flor embaixo do Sol,
origem de todo aroma.