quarta-feira, 14 de dezembro de 2022

O avesso das ragas

 

O avesso das ragas


E então quero falar do corpo sutil dos escritos,

de luzes rosadas que o crepúsculo reflete nos arrecifes

e na superfície do lago calmo do mar junto a mim,

melodia conjunta trilhando todas as estradas até aqui,

pontos de fuga que continuam estabelecendo o infinito

até a palma da minha mão que perdeu todas as linhas

procurando um amor que amanhecesse essa baía distante

e respondesse ao meu lado os lençóis ainda úmidos de amor.


Então eu quero cantar ragas que ouço

por verdade e ousadia de cometer mais um pecado

sob o sorriso cúmplice de Deus que me acende por dentro

nesse instrumento que toca meus dias e onde estou agora,

dançando estrelas que já se apagaram e permanecem no meu céu,

límpidas como o universo que vejo em milímetros

e que afirma tudo ao redor,

faísca que engoliu sua própria luz!



segunda-feira, 5 de dezembro de 2022

A curva das canções sem palavras

 


A curva das canções sem palavras


À seiva da coragem que escala o cerne das árvores

transportando o hades do solo até a claridade

do sol incandescente que derrete todos os metais,

não interessam medalhas de honra ao mérito

nem valhalas como recompensa.


Assim como os navios gigantescos

não pertencem à consciência morna e plácida das baleias

nem enxergam os horizontes submersos que elas veem,

manhãs encantadas não cabem nas redomas

do mais puro cristal.



sábado, 10 de setembro de 2022

Manhã

 

Manhã


No piso sem chão da minha catedral sem teto

bate um sol que não conhece dúvidas

e está isento de certezas,

inegável e simples como um amanhecer,

valente e morno como o coração dos heróis

que conquistaram suas próprias sombras

e desconstruíram seus próprios muros.


Entre a luz e o acaso

há uma fresta para todas as possibilidades.




segunda-feira, 30 de maio de 2022

Birutas

 

Birutas


Como todos os dias, os homens passam blindados

checando aplicativos que ensinam a viver de graça

como birutas ao sabor das direções que o vento impõe.


Enquanto isso eu me perco na amplitude da paisagem

procurando meteoros para entender milímetros

do espírito fugaz que constitui as atmosferas.


Todos os poetas se parecem árvores

e nesta floresta cada uma delas é uma lição sem rimas,

o enigma da santidade no farfalhar de muitas folhas.


Belos ciprestes apontando estrelas:

arpões contra um céu inteiro capturando divindades!


Abençoados aqueles que são tragados pelo Alto

como as imagens alongadas de El Greco permitindo nuvens:

Sagrados hieróglifos talhados na pedra

de acordo com a dor invisível do polimento!


Um cinzel cortando tudo no viés da vida experimentada

das lascas de seu mistério mais cru...


A implacável ironia das lâminas levantando obeliscos!





quinta-feira, 21 de abril de 2022

A Voz da Floresta


A Voz da Floresta


O zíper indômito da alma

desconstruindo o vinco da máscara,

dos rótulos e dos vínculos,

desvenda um selvagem inocente

que vive aqui dentro,

desconhecendo o limite claustrofóbico dos muros

e que respira num só trago

toda a emanação úmida da floresta.


Assim, internamente nu,

vestido apenas de amanhecer,

ele sai para conquistar o leito de rio

que o conduz até um mar

sem regras e frações de tempo,

onde tudo acontece simultaneamente

e tudo se congrega, compreende e se acalma

e o profundo se enxerga intacto feito dia.


Com o vasto oceano destilado no peito

seu coração é um sino dobrando a liberdade

em que a luz incide o princípio

de poder andar descalço para sempre

porque o solo foi agora consagrado imortal

e os deuses voltaram definitivamente do naufrágio

trazidos por aquele que domou a volúpia das águas

e transformou os peixes em pássaros que respondem.







sexta-feira, 15 de abril de 2022

Legato

 

Legato


Os verdadeiros alpinistas almejam os céus.


A falta de asas fez com que os homens se apaixonassem

pelo perfil íngreme das encostas

e inventassem a dança para conquistar o espaço alado

entre Deus e o chão.


E assim herdamos linóleos e neblinas.


Para quem os precipícios são degraus,

o coração segue aos tropeços

enquanto as mãos calejam a impiedade fria das escarpas

e os músculos tremem pela escalada até o topo

em suor e êxtase.


Eles sabem que o pináculo

é o ponto mais próximo do nada

cismando reflexos em cristais e gelo.


Píncaros ímpares, sustentem todas as nuvens ao redor

porque na base da montanha ficaram todos os adeuses:

pedras fundamentais de começos,

meios e fins cobertos pela avalanche implacável do tempo.


Moldando leões na neve das rochas, permanecem os sonhos

expiando os rugidos de cada passo rumo ao Dia da Ressurreição,

quando a Pedra Negra falará em favor

daqueles que a tiverem beijado.


E as bandeiras de oração tremerão ao vento

desfiando rosários pelos vales de Indra

como um murmúrio uníssono que se revelará em mil ecos depois

no sopro de um único silêncio,

sem qualquer ruído, sem nenhum sinal.



segunda-feira, 28 de março de 2022

Farruca

 

Farruca


Preciso viver rente à minha seiva,

moendo o grão e o sal dos meus sonhos

para construir os alicerces de um paraíso,

recriando o dna de um Deus que me redima

de tudo que não pude polir:

diamante-réu de minha própria sina.


Até mesmo o que é raso, incondicionalmente

passa antes pelo véu dos meus profundos

porque é desse porto que eu venho

e dele estou sempre chegando,

leito de rio que permanece contínuo,

indômito, sem âncoras de partir.


Se persisto

é porque no íntimo meu lema é tempestades à risca,

cumpridas em meio ao calor da paisagem

e da gravidade que nenhum astronauta ousa ignorar.


Apenas cumpro rios em meus sonhos de acordar

como se tudo não passasse de hoje, de agora e de já!


Soa o alarme!


É o bote! Revejo tudo em oito segundos

e o infinito se desintegra imparcialmente.


Foi-se a vida num raro degradée,

gosto de quimera, sorrindo do que chegou a ser.

sábado, 12 de fevereiro de 2022

Canção para um novo inverno

 

Canção para um novo inverno


Enquanto o jugo puído pelo roto punho do mundo

impõe camisas de força

pagas em moedas de sangue e balões de oxigênio,

para assombro dos fantasmas

eu vivo e respiro da minha nudez interior,

completamente em paz com o inverno que se anuncia.


E tudo se congrega na mais absoluta resignação,

sem qualquer hierarquia. O inexplicável continua ambidestro

dialogando comigo tanto a direito quanto na contramão

na sucessão de incontáveis eventos

que somente a imparcialidade do retrovisor

pode entender e alcançar de braços abertos

alternando no mesmo cálice sua cruz e redenção.


Há muitas estações abandonei a segurança das vias pavimentadas

pela aventura sublime da mata fechada

abrindo atalhos para o interior da selva densa

contando apenas com a sabedoria inexorável das lâminas

e a exaustão completa de todos os relógios,


Assim, mesmo sem a permissão dos semáforos

ou sinalização demográfica

abracei definitivamente a maratona dos desertores

sem bússolas nem astrolábios,

somente o beijo úmido e cúmplice da floresta

atirado de viés pelo silêncio do indicador.


Raramente dedos em riste apontam para a liberdade.


Entre aborígenes e bumerangues

a verdade está na curva.

Não há linha reta ou diâmetro

entre deuses e homens.