sábado, 28 de dezembro de 2013

Três Fados para Maga [ II Alfama ]




Alfama

                                                                     a Magali Merola


A noite trouxe segredos que o dia recompôs em outras cores

de amanheceres raiados atravessando nuances e dourados,

larga viagem para tão pouco amor,

memória vaga e latejante em minhas veias

procurando ainda os antídotos que não pude trazer à tua vida...


Minha lira emudeceu em teus cabelos

e tua metamorfose calou fundo meu coração e meu sangue

a esperar teu regresso, num arco-íris entre meus dedos feridos.

Risquei com minhas facas a marca das tuas pegadas

para despistar dos deuses do destino tua passagem

mas o peito aberto gritou cada passo e te segui.


As palavras do teu fado retornando em ecos ao longo dos meus dias

estremeceram lágrimas nas retinas em adeuses

de meu sorriso esperado

num porto a que já não voltas:

cais mudo das tuas respostas

em navio envolto por neblinas...


Se perdido entre as esquinas da saudade

procurar teu perfume em todas as flores

nenhuma responderá tua voz ou viagem: meu acalanto...

Mas ainda assim, incondicionalmente eu canto!


Se estrelas desenham tuas constelações em meu dorso nu

uma coreografia de luzes se alastra rasgando um céu em cicatrizes.

Teu Paraíso é minha tatuagem.


Tua dor que não se apaga, adormece em meu colo de criança,

teu pulso, uma tarefa cumprida num entardecer revolto

tardio como um ipê roxo em fins de primavera.


Dançaste a vida em supostos sonhos negros,

anjo alucinado em minhas brumas de quaresma,

não respondo por meus versos, véus que me perseguem

em pistas imaculadas pela neve

dessa vida que me derrete pouco a pouco

rarefeita em visões lisérgicas e tênues sem tua presença insone dentro dela:

Redoma.


Moira do tempo, Átropos do que foi palco um dia.

Ísis sem véus e que nunca transgride

a estreita noção entre medo e desejo: mistério desfeito.


Epifanias...


Amor meu, conduz minha viagem que prossegue a pauta agora

sem canções de despedida que possam ousar meu degredo

e que meus olhos não pulverizem presságios que não pude inventar

no primeiro solavanco da carruagem de Elias

que me aguarda à porta da casa bem agora

em seus corcéis arrebatados nesta noite

como no Livro dos Reis...



Três Fados para Maga [ I- Mouraria ]



Mouraria

                                                      a Magali Merola


Se um fado viesse cantar em mensagens de ansiedade

tantas histórias de um tempo de não existirem cantadores

ao som dos personagens vagando as ruas da Alfama

tomaria da guitarra seu pranto de rio magoado

e comporia meu Tejo num murmúrios de vinhedos.


Tragam-me um pão que adivinho, por clarividência de Caronte

as notas de todas as canções não inventadas

porque tua música é meu vinho

e entre verbos e saudades, conjuguei todos:

cem modos de embriaguez, indicativos ou subjuntivos

e bebo aos goles o presente para não engasgar o passado.


Na palma da minha mão teu nome foi escrito.

Foram sonhos? Se em tatuagens ou cicatrizes já não sei...


Os calos que as facas deixaram em queloides caligrafias

cobriram a tua história. Mas teu coração de cigana

cresceu pulsando sua dança as estradas da minha alma

sem deixar pistas, apenas um vago perfume

que me orienta em noites de chuva e me levam ao mesmo rio

em que comecei a cantar teu Fado com a voz da minha infância.


Teu condão dividiu meu mar em dois

e fez da cisão um Oceano

onde volto todos os dias

a ser peixe em tua coreografia celebrada.


Tua Obra é meu ofício

Eterna Musa, Luz dos meus dias!

Flor do meu peito que se abre, mais nada…


28.12.13






quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

Kailash



Kailash


Três vezes circundei a montanha

antes que a neve caísse em meu rosto.


Um marco deixado entre as bandeiras das colinas,

um murmúrio de ventos revelando rezas

em mensagens cifradas a ouro e prata.


Sussurros de veracidade soprados desde sempre

pelos desfiladeiros e amplitudes ao redor...

52 km em sentido horário.


Poeira nos lábios e na garganta

devido às prostrações.


Calosidades nos pulsos

após tantas fricções nas pedras do caminho

e a alma limpa de um dervixe giratório.


Kailash desde sempre...


...Indus...


Três vezes os senhores de todos os tempos

voltaram-se para me lembrar a linha demarcada

entre a vivência dos limites

e a amplitude dos sonhos por serem sonhados.


Espelhos que desvendaram verdades cruas

mas prontas como um pesto ala genovese

que deveria ser comido frio.

Assim fiz.


A fome que me encontra hoje...

não é mais um jejum sublimado e voluntário...


...Sutlej...


É sentar-se então à mesa e iniciar com um brinde

à luz maior que abençoa todas as refeições,

a responsável pela fome mais sagrada:

a que sempre trazemos como provisão aos nossos dias insanos...


...Brahmaputra...


Nosso desejo maior de nutrir o mundo em alcaloides

é fazer da luz espessa do termômetro, uma neblina

para arrefecer qualquer temperatura

que porventura ainda não tivermos decifrado

apenas para afastar as miragens da febre que encanta

mas não sacia sede alguma.


Ilusão sôfrega...


Hoje os cantis estão cheios de néctar.

A caravana é uma cidade em dia de música.

As abelhas agora produzem mel nas rochas do deserto!


Num espaço sem medidas

com a ampola do tempo feito neve derretida...


Frente a um espelho que não acrescenta nem subtrai,

refletindo alturas sem previsão alguma de alpinistas

na conversão de quatro grandes rios imaculados

circundando um ônfalo:

sede vencida!


...Karnali...


Kailash pairando acima da névoa...


A montanha não precisa ser conquistada.

Basta sua visão em magnitudes

para atingir o Sol além das nuvens

e abraçar atmosferas que gravitam

tanto na Via Láctea quanto nos elétrons em torno do coração.

Imutável despertar sem fronteiras.