domingo, 25 de agosto de 2024

O Vale da Bateia

 


O Vale da Bateia

 

Plantando mares e céus

com sete pinceis riscando o arco-íris

em malabarismos de uma ponta à outra

e mais um tesouro escondido!

É subcutâneo, mas alcança nuvens

do colo morno e sábio de braços que não dormem jamais

em segredos acordados à luz de todas as manhãs...

 

Depois, elas se abrem em pandoras e pérolas

e as montanhas sorriem beijos iluminados

de um mesmo sol multiplicando-se em astrolábios

e nas entrelinhas, o céu azul em precipícios

como pináculo maior que definitivamente mói meu chão.

 

As verdadeiras gemas preciosas correm mesmo é pelo sangue

de quem garimpou cada célula na escalada de um universo sem fronteiras.

 

O garimpo é assim,

em pleno pântano

driblando os crocodilos para trazer os lotus à tona,

mergulho para a redenção de todo lodo

teleguiado pelo escafandro da nudez.

A compreensão desse limbo talvez aconteça mesmo é pelos vieses,

serena e bela, como carpas coloridas

adivinhando-se entre musgos e reflexos na água

de um sol na transversal incidindo redes moventes

num leito de areia onde luzes dançam.

 

Pirotecnias e fogos de artifício são nada quando se trata de almejar estrelas!

O mundo, sempre carente de transfusão,

permanece fiel à sua hemorragia debochada,

colado contra a parede como um prego que tenha errado de cruz

e perdido seu cristo.

 

Na divisa do Sinai com o Mar Vermelho,

fronteira entre a sede e o navegar

quis trocar pedras do mar pelas do deserto e vice-versa,

para que se encontrassem finalmente num êxodo

que não trouxesse para dentro de casa nenhum refém.

 

Definitivamente não apanhei nenhuma concha,

ainda que fosse a mais bela que encontrasse.

 

Hoje, todos os seixos que trouxe de vários lugares

misturam-se e confundem-se

num ecossistema sem pistas que jamais previra em artimanhas

no seio da minha sala,

réus numa redoma de vidro.

 

Assim também as folhas secas guardadas dentro dos livros,

como lembranças de bosques e árvores diferentes

são hoje mapas de esquecimento sem hierarquia

embaralhando geograficamente o que meu coração revelou

e um raio de ilusão quis inventar por descuido

amarelando na prateleira

como se vendesse um sonho inquebrável de ampulheta

cuja areia variou de uma extremidade à outra

sem nunca encontrar a liberdade de uma praia que lhe atendesse.

 

É invariavelmente do meu peito que o mar começa.

Tudo mais são ondas que passam.



Das Arlequinadas do Pierrô Aletrist - Os Zannis

 


Os Zannis

 

Ogivas explodiram ao longe

à guisa de fogos de artifício

e essa era a narrativa dos dias

enquanto davam pães aos pássaros

sem sono para deitarem-se mais cedo.

 

Seus corpos eram deles por alguns instantes

até que voos cobrissem o céu de ruídos

e os levassem do Éden insone que não pediram

até uma próxima estação. Circo Movente.

 

Antes que os sussurros vestissem sombras,

o breu da noite murmurou algum vestígio

e nuvens encardidas vieram lentas

numa sinfonia de milhares de flâmulas

receber o dia que sorriu pela janela

(sim, amanheceu enquanto você dormia...)

do último trem sem dizer adeus.

 

Não havia ninguém na plataforma...

 

Nem precisava. Foram embora assim mesmo,

com as malas cheias das fantasias amarfanhadas pela vida...

 

Vestiram os velhos fardos, rotos e puídos

alegres perante seu resgate de palhaços vencidos

pelo sorriso de dentro sem qualquer maquiagem ou cor.

 

Seriam sempre 'Il Teatro Zanni':

Covielo, Trivelin,

Scaramouche, Pulcinela e Arlequim,

personagens sobreviventes do que fora um dia

um espetáculo maior chamado 'La Commedia'.

 

Trouxeram também um rosário

cujas contas não multiplicavam números primos

e traiçoeiramente subtraíam-se.

 

E foi então que a doideira toda começou...

 

Naquela noite foram rezando picadeiro afora,

elevados em acrobacias sob a lona suja

porque não compreendiam mais a máscara do mundo

e fazer rir perdera totalmente o sentido.

 

Repetiram seus números para cadeiras vazias

ainda que meia dúzia de fantasmas lhes pedissem

que apagassem de vez a luz do mundo.

 

Não o fizeram. Sob o látego do trapézio

imperavam soberanos, muito acima da discórdia da tragédia

que externamente rondava o espetáculo todas as noites.

 

Ali, no oco da viola,

era como se fossem a luz do próprio dia

que mesmo sem concordar, ninguém negava nem via

ou podia desmanchar.

 

Foram heróis porque perderam tudo,

à parte suas próprias lendas: essas cumpriram à risca!

Gastos, vencidos, a maquiagem já borrada pelas lágrimas

mas o olhar altivo no horizonte que sempre se delineava

mesmo que fosse pela linha torta de um rímel

encimando sorrisos pálidos num contorno tênue de batom.

 

Eles tinham dragões por dentro

e queimavam pecados sem que ninguém percebesse.



sexta-feira, 9 de agosto de 2024

As Nove Canções Desconhecidas para Adumbra

 



As Nove Canções Desconhecidas para Adumbra

 

Adumbra nunca foi das sombras.

Apenas viveu junto delas

até que surgisse Adlux

e fossem os dois tão perfeitos

que até poderiam ser três e fundar uma atmosfera.

Mas essa tríade jamais existiu.

 

Daquelas Canções Desconhecidas

que os dois cantavam ao entardecer,

nada se conheceu.

 

Permaneceram nas entrelinhas do ineditismo,

que é onde tudo de essencial reside

sem qualquer necessidade de legenda, fórmula ou conteúdo.

 

Os dois anjos também foram temas

de métopas e mármores esculpidos.

 

Ainda que transpirassem florestas

criando um ecossistema de brisas

correndo livre entre as estátuas e pedimentos,

nada mais que um hálito tépido

dos que narraram o talhe de seu mito

pôde representar a redoma rarefeita e sublime

que na lida divina de além-friso

eles transmitiram olímpicos

entre a pátina das nuvens

e o mar: uma parede móvel a ser continuamente atravessada

por epifania e mistério.

 

Sem deuses não se fazem heróis

e eles os tinham, sustentando a lenda de seu jugo

que por isso lhes parecia leve.