domingo, 22 de setembro de 2013

O Peixinho Dourado de Paul Klee




Equinócio

                                           a Maria Lucia Merola


Já é outono no meu peito de criança mal dormida.


Sonhei todas as primaveras para que esta chegasse

trazendo árvores falantes que me contassem a verdade

sobre o mistério da seiva que corre em ascensão

como um modelo de alma aprisionado entre folhas e solo.


Falei dos redemoinhos onde pousei insólito

como num voo ingênuo e inesperado

até que o próximo tsunami passasse

e me levasse de tabela para o próximo vendaval...


Choveu sal nas minhas pegadas...


Não houve adubo, sol ou receita

que me fizesse voltar dinâmico para o meio do campo

para inundar de júbilo meu coração sedento pela próxima colheita.


Das pálpebras insones que agora testemunham

o escafandro rarefeito desta fria claridade

emerge a chuva que esperei neste intermezzo

traduzindo na superfície da terra

a resposta terna ao sol que me queimou em luzes no último verão,

intersecção arterial entre a sirga e os remos,

entre o colapso fauve e a ascensão dos meteoros em transe,

rastro e pista para descrever em segundos toda a história milenar do cosmos

como se ele fosse um brinquedo desmontável de Paul Klee...


Coração que pulsa novos ritmos

onde o silêncio não dispensa ainda alguns ruídos

e as perguntas perdem peso e medida...feito moda de viola.


Tempo de viver respostas,

elevar da argila úmida um novo homem centenário

que possa tratar das equações indeterminadas em termos de igualdade

e da mecânica celeste como num jogo de amarelinha.


Restou entre céus e infernos riscados a giz por Vlaminck

uma cabala sorridente onde brincamos os dias da eternidade

sem a mínima pretensão ao mistério,

em que o equilíbrio podílato da criança em questão

desconhecia de todo a vertigem póstuma do trapézio,

de quando o circo pega fogo em plena corda bamba.


Chove, minha alma!

Chove a virga de todas as possibilidades

no tesouro encardido desta lona furada e vencida,

neste pedaço de universo que não vai além da minha cerca

mas que tem me ensinado mudo aos quatro ventos

que não há um único argumento sequer neste planeta

capaz de negar o sol de todos os dias

de todas as noites

de todas as minhas veias cansadas e já despertas.


Canta, alma sagrada!

Canta livre de rimas, métrica ou sentido

porque o eco do teu sopro vai inundar para sempre

as asas de cada recôndito do sistema solar

repetindo em sopranos como um elétron cúmplice de luz

a trajetória invisível da conquista divina em torno do núcleo

deste coração encantado que te alimenta em espírito!

Para sempre.

Para sempre.

                                                                                       22.09.13








segunda-feira, 16 de setembro de 2013

Do Mistério entre Árvores e Homens


Romãs

                                                a Maria Lucia Merola

Três romãs vieram me contar sonhos vivos de natureza

num dia de amanhecerem os alentos

em que o ‘espírito de Deus movia-se sobre as águas’.


Puseram-se diante de mim, entradas pela porta da frente,

num prato de louça em minha mesa, posta para a próxima aquarela

que eu pintaria em meus desejos sem fim.


Queimando em vermelhos de insistência, incêndios de fertilidade,

a primeira me falou de vertigens que sofrera na árvore

em condenações de prosérpinas e perséfones: lenda de tudo,

e de como os homens costumavam conversar com ela

numa linguagem cifrada a ouro e prata

cujo código depois não conseguiam repetir entre eles mesmos.


Há certa fragilidade nessas relações

onde o silêncio fortalece o claro enigma

como janelas abertas para um novo dia.


E em questão de segundos,

impávida sem fim,

a segunda romã me perguntou sobre a terceira,

não mais presente.


Esta, aberta para o Trabalho,

com o passar dos dias queimara sua própria existência

num altar onde se adorava o belo

sem precedentes de qualquer diálogo entre mito e ser.


Alquimia de sangue e húmus

meu coração em triângulos se perguntava

sobre o fado como fruta do destino

a transmutar-se em água e cor sobre um papel…


Imersa em branca folha e entre vozes de chiaroscuro

a terceira romã nos respondeu então em sobretons:

- Ein sof


E assim, num diluir de falas

através do que nos disse em flamejantes

restou o amor que nunca estanca, só abrange,

incenso queimando superfícies para atingir estratosferas.


E ouvimos então da árvore

que tudo sabia desde o princípio sobre o fim de tudo

até que um sfumato calou nossos cinco lábios

numa moldura de sorrisos sem fim.

Sem precedentes.

                                               16.09.13






quarta-feira, 11 de setembro de 2013

Petardos para acordar o Sol




Dardos

                                                a Maria Lucia Merola


Sua flecha dourada de anjo revolto esconde em sua lâmina

o corte duplo que dilacera e reconstitui

só para depois gerar aqueles efeitos colaterais

nos quais perde-se o sono mas também não acordamos de uma vez,

permanecendo num estado de transe para sempre,

recostado no batente do próximo amanhecer

contra o último minuto de noite no cenário:

Atado em frente ao Paraíso sem poder entrar.


Então sua flecha de anjo dourado que me atravessa sem fazer ruídos

divide meu coração em lucidez e só-luz.


Sem reservas entrego meu peito aberto de guerreiro

latejando farto um ritmo já em turbinas,

mas no todo sendo o silêncio

do anjo sem nome quando abençoou Jacó depois da luta.


Intuí calado um ruflar de asas,

roçar de sedas de um longo vestido

ou auréolas perdidas na última tramoia

de um baile de querubins que terminou em duelo,

como sempre acontece no mármore de todos os frisos e panteões.


Vim aqui contar essa estória

a qualquer arlequim que possa aperfeiçoar esse truque

como se ele se tratasse somente de

um tiro ao alvo dado à louca entre um número e outro

no parque de diversões aqui ao lado.


Faz frio na roda gigante!

- assim grita a alcateia da audiência

aos chacais em espasmos

pela próxima vítima sendo condenada ao escuro

dentro da lona.


Mas um homem de Deus é eleito enfim

e ele emerge de seu delírio para reconstruir o circo.


A cortina se fecha e por um segundo

um show de raios se divisa por detrás dos bastidores.


Quando ela se abre alguém está no palco,

só tal qual um ícone alongado para o alto

como as pinturas de El Greco procurando o céu de Toledo.


- Eles querem pão e circo

e eu lhes prescrevo um jejum de sete dias.


Quando a própria fome se transformar em espetáculo

a mesma audiência estará em cena

para redimir seu jogo a esmo

e plantar outra vez sua colheita de pão devorado.


Que há para contar do chão dos dias

se agora as arestas de todas as esquinas

estão enfeitadas com pedrinhas de brilhantes

para nosso amor passar?”


E foi assim que o Trivelin encontrou de volta

sua comédia del arte quase por encanto

como se nunca tivesse ido de um reino a outro

procurando diamantes, que afinal trouxe

para pavimentar todo o caminho principal

conduzindo ao picadeiro

como o petardo do começo dessa estória.


Olhe! O domador de feras

é o mesmo artista que fez o acrobata,

que por sua vez é o palhaço

e que também faz as pipocas

que a gente compra na entrada.


Ele carrega um espetáculo consigo.

Como o trapézio de onde começou,

oscilando entre a febre das alturas

e o roseiral que plantou atrás do circo

por amor à colombina.


Todos os dias as três fileiras da frente

estão tomadas por uma legião de arcanjos,

transparentes espectadores

regendo o show numa liturgia secreta.


Quando eles se entusiasmam e batem as asas,

penas voam na plateia que está atrás

e todos pensam que são efeitos especiais exclusivos.


Catraca.


Quando eles se vão,

recolhem às vezes a aura que tiraram por descuido

e limpam a poeira dos vestidos impecáveis

antes de entrarem de volta

no Jardim do Éden

comendo a maçã do amor

que Eva aprendeu a fazer com a serpente.

Finda fábula.

                                     

                                                                                                   

Os deuses vêm

                                                              a Maria Lucia Merola


Houve um tempo de as bênçãos serem bênçãos,

assim como de as lições serem apenas simples lições.


Hoje as bênçãos são grandes lições,

pegadas impressas por quem sabe onde pisa

tatuando marcas cada vez mais opacas, mais imprecisas.


Na verdade, um bom par de asas dispensa de todo o uso de sapatos.


É difícil perseguir os anjos. Vago silêncio.

Por vezes a única pista é só uma direção.

Depois tudo se esvai em nuvens,

até que ao final nós mesmos nos tornamos eles

e junto com os sapatos

vão também nossas asas de cera

- aquelas que havíamos construído em sonhos – 

e também nosso degredo remoto de deuses de brinquedo.


Então, é da dor que se produzem voos

e do tempo, se a eternidade estiver em comum acordo,

o risco tentado por querer simplesmente almejar estrelas

e alcançar por sorte e desatino o divino beijo dos anjos

feito rima ao acaso de estrofe em batom encontrada.


Tenho pois, o mar nos olhos

e um segredo por contar preso numa garrafa.


Quando pesam-me as pálpebras do sono

perco o número das ondas e já não sei de cor

a tabuada dos sonhos para decifrar tantas mensagens.


Aprendi, assim, o caminho de memória

pela repetição diária do trajeto,

pelo exercício efêmero de ser boto e ser Netuno.

Falta-me um destinatário e um porto

para descansar a sede pirata que me rouba

e o instinto selvagem que me cega,

Ulisses posto em algemas e denúncias de prazer atado.


Atirarei ao mar minha garrafa

com uma correspondência mágica

sem me importar com a curiosidade do cardume

ou a fúria exata das marés em expansão.


Vou agora mesmo até ao fim da praia

dizer que algum dia baterei em minha porta

isento de sereias ou canções de despedida.


Chegarei a casa desta vez para ficar indefinidamente

e nunca mais dormir fora

nem dentro.


Minhas canções sobre Ítaca

ainda pertencem ao porto de nenhuma conclusão

e esse mar aberto é uma resposta

nem sempre anunciada de sobreaviso.


Por isso, antes de me tornar marinheiro de verdade,

pensei que ser surfista era um meio inteligente

de combinar a aventura sensível

e a viagem arriscada entre meus tubarões de reserva

tendo o mar imenso como nada mais que um argumento de mergulho

em meu coração agora-já de combate.


Louco de Deus e de sol

tenho mirado as vésperas de mim mesmo

e errado com o relógio pelo avesso,

atravessado paredes

pela clarividência dos meus verbos tortos e impotentes,

esperando príapo o retorno da primeira estrela

quando o dia começa tarde, lento, quase adormecendo de novo

para confundir sonâmbulo as cores do natal e da quaresma.


Só um dedo de tempo

e um beijo atirado ao longe

para decifrar os selos árabes

que continuam para além daquela eternidade anunciada

e que ainda não era eterna,

mas apenas um limite e um conceito acreditados

para que no fundo do tacho só restasse uma pergunta:

Quem sou eu quando sou?


Se me raspam o doce, eu amargo.


Viver é um trabalho de calígrafo

sem previsão alguma de nanquim.

A última superfície a preencher é o céu

e ele pode evaporar-se num sopro

para começar tudo de novo:

prana para algum Adão disposto a recriar o mundo

e pecar indefinidamente o paraíso todo.


Que a luz invada a escuridão de nossos parques abandonados

onde um balanço ainda oscila nossa última passagem por ali.

Foi bem agora. Não há mais mistério algum.

Tudo brilha!


Demiurgo

                                                    a Maria Lucia Merola


Quem viu cada nova rosa surgindo no jardim?


No inesgotável e árido jardim:

talismã de se viver

cada espinho colhido pelo tempo,

cada métrica de quando ainda não havia versos

e toda a espera de anos era por uma colheita sem fim.


A chuva medida em milímetros cúbicos

e o amor à velocidade da corrente sanguínea

movendo-se por diferenças de pressão...


Virga que não chegou a ser propriamente chuva

mas inerentemente água,

insubstancial e ocorrendo ainda assim

como eco em miragem de sons e gongos:

negra liturgia.


Quem ouviu todas as flores

como um demiurgo apaixonado pelo belo

apenas pela aventura em oxigênio da invenção?


Ato falho.


Jagunço aedo sem destino algum exceto a luta

vou agora mesmo buscar uma resposta

para amortecer as travas do silêncio

e recomeçar como brinquedo de corda que jamais parasse

esquecido numa esquina qualquer de universo

sem sinal algum de transeuntes no farol:


Quem viu cada rosa surgida no jardim?


Concisamente o belo, o efêmero e a intransitável

passagem para uma nova estação...


Breve suspiro de cor que a seiva trouxe

para expressar hermética e silenciosa

a voz negra do seio da terra cantando seu húmus

em uníssono de flor.


Numa região de aridez cáustica o suficiente

para calar a voz que desertos gritam,

cultivar flores é alquimia de jardineiro mágico:

tem a dimensão dos transes dervixes,

a brevidade fugaz das aquarelas

e a imprescindível invisibilidade de um prana:

flash de corisco raio na paisagem temporal,

quando se entende a visão total em questão de segundos

e acabou-se.


A imagem indefinidamente colada nas retinas

sem verbos que a entendam.


Fosse um pássaro

voltaria aqui todos os dias

cantar indefeso esse jardim

enquanto meu voo não partisse.


Fosse aedo

inventaria mil cordéis em odisseias

sem precisão alguma de viola nessa roda

só pra ser dono do repente à minha volta

e recriar a rosa que lavrei em seus cabelos

num pretexto para a próxima primavera.


Passa ao largo uma brisa de outono

e tudo se recria em moto perpetuo ad infinitum.


Para a Via Láctea as estações são nada mais que uma célula,

sequer um átomo.


Velocidade é igual a espaço sobre tempo.


A matéria de que tratam as grandes canções

não tem fórmula, peso ou adubo.

Deus é pura velocidade.