Dardos
a Maria Lucia Merola
Sua flecha dourada de anjo revolto esconde em sua lâmina
o corte duplo que dilacera e reconstitui
só para depois gerar aqueles efeitos colaterais
nos quais perde-se o sono mas também não acordamos de uma vez,
permanecendo num estado de transe para sempre,
recostado no batente do próximo amanhecer
contra o último minuto de noite no cenário:
Atado em frente ao Paraíso sem poder entrar.
Então sua flecha de anjo dourado que me atravessa sem fazer ruídos
divide meu coração em lucidez e só-luz.
Sem reservas entrego meu peito aberto de guerreiro
latejando farto um ritmo já em turbinas,
mas no todo sendo o silêncio
do anjo sem nome quando abençoou Jacó depois da luta.
Intuí calado um ruflar de asas,
roçar de sedas de um longo vestido
ou auréolas perdidas na última tramoia
de um baile de querubins que terminou em duelo,
como sempre acontece no mármore de todos os frisos e panteões.
Vim aqui contar essa estória
a qualquer arlequim que possa aperfeiçoar esse truque
como se ele se tratasse somente de
um tiro ao alvo dado à louca entre um número e outro
no parque de diversões aqui ao lado.
Faz frio na roda gigante!
- assim grita a alcateia da audiência
aos chacais em espasmos
pela próxima vítima sendo condenada ao escuro
dentro da lona.
Mas um homem de Deus é eleito enfim
e ele emerge de seu delírio para reconstruir o circo.
A cortina se fecha e por um segundo
um show de raios se divisa por detrás dos bastidores.
Quando ela se abre alguém está no palco,
só tal qual um ícone alongado para o alto
como as pinturas de El Greco procurando o céu de Toledo.
“- Eles querem pão e circo
e eu lhes prescrevo um jejum de sete dias.
Quando a própria fome se transformar em espetáculo
a mesma audiência estará em cena
para redimir seu jogo a esmo
e plantar outra vez sua colheita de pão devorado.
Que há para contar do chão dos dias
se agora as arestas de todas as esquinas
estão enfeitadas com pedrinhas de brilhantes
para nosso amor passar?”
E foi assim que o Trivelin encontrou de volta
sua comédia del arte quase por encanto
como se nunca tivesse ido de um reino a outro
procurando diamantes, que afinal trouxe
para pavimentar todo o caminho principal
conduzindo ao picadeiro
como o petardo do começo dessa estória.
Olhe! O domador de feras
é o mesmo artista que fez o acrobata,
que por sua vez é o palhaço
e que também faz as pipocas
que a gente compra na entrada.
Ele carrega um espetáculo consigo.
Como o trapézio de onde começou,
oscilando entre a febre das alturas
e o roseiral que plantou atrás do circo
por amor à colombina.
Todos os dias as três fileiras da frente
estão tomadas por uma legião de arcanjos,
transparentes espectadores
regendo o show numa liturgia secreta.
Quando eles se entusiasmam e batem as asas,
penas voam na plateia que está atrás
e todos pensam que são efeitos especiais exclusivos.
Catraca.
Quando eles se vão,
recolhem às vezes a aura que tiraram por descuido
e limpam a poeira dos vestidos impecáveis
antes de entrarem de volta
no Jardim do Éden
comendo a maçã do amor
que
Eva aprendeu a fazer com a serpente.
Finda fábula.
Os deuses vêm
a Maria Lucia Merola
Houve um tempo de as bênçãos serem bênçãos,
assim como de as lições serem apenas simples lições.
Hoje as bênçãos são grandes lições,
pegadas impressas por quem sabe onde pisa
tatuando marcas cada vez mais opacas, mais imprecisas.
Na verdade, um bom par de asas dispensa de todo o uso de sapatos.
É difícil perseguir os anjos. Vago silêncio.
Por vezes a única pista é só uma direção.
Depois tudo se esvai em nuvens,
até que ao final nós mesmos nos tornamos eles
e junto com os sapatos
vão também nossas asas de cera
- aquelas que havíamos construído em sonhos –
e também nosso degredo remoto de deuses de brinquedo.
Então, é da dor que se produzem voos
e do tempo, se a eternidade estiver em comum acordo,
o risco tentado por querer simplesmente almejar estrelas
e alcançar por sorte e desatino o divino beijo dos anjos
feito rima ao acaso de estrofe em batom encontrada.
Tenho pois, o mar nos olhos
e um segredo por contar preso numa garrafa.
Quando pesam-me as pálpebras do sono
perco o número das ondas e já não sei de cor
a tabuada dos sonhos para decifrar tantas mensagens.
Aprendi, assim, o caminho de memória
pela repetição diária do trajeto,
pelo exercício efêmero de ser boto e ser Netuno.
Falta-me um destinatário e um porto
para descansar a sede pirata que me rouba
e o instinto selvagem que me cega,
Ulisses posto em algemas e denúncias de prazer atado.
Atirarei ao mar minha garrafa
com uma correspondência mágica
sem me importar com a curiosidade do cardume
ou a fúria exata das marés em expansão.
Vou agora mesmo até ao fim da praia
dizer que algum dia baterei em minha porta
isento de sereias ou canções de despedida.
Chegarei a casa desta vez para ficar indefinidamente
e nunca mais dormir fora
nem dentro.
Minhas canções sobre Ítaca
ainda pertencem ao porto de nenhuma conclusão
e esse mar aberto é uma resposta
nem sempre anunciada de sobreaviso.
Por isso, antes de me tornar marinheiro de verdade,
pensei que ser surfista era um meio inteligente
de combinar a aventura sensível
e a viagem arriscada entre meus tubarões de reserva
tendo o mar imenso como nada mais que um argumento de mergulho
em meu coração agora-já de combate.
Louco de Deus e de sol
tenho mirado as vésperas de mim mesmo
e errado com o relógio pelo avesso,
atravessado paredes
pela clarividência dos meus verbos tortos e impotentes,
esperando príapo o retorno da primeira estrela
quando o dia começa tarde, lento, quase adormecendo de novo
para confundir sonâmbulo as cores do natal e da quaresma.
Só um dedo de tempo
e um beijo atirado ao longe
para decifrar os selos árabes
que continuam para além daquela eternidade anunciada
e que ainda não era eterna,
mas apenas um limite e um conceito acreditados
para que no fundo do tacho só restasse uma pergunta:
Quem sou eu quando sou?
Se me raspam o doce, eu amargo.
Viver é um trabalho de calígrafo
sem previsão alguma de nanquim.
A última superfície a preencher é o céu
e ele pode evaporar-se num sopro
para começar tudo de novo:
prana para algum Adão disposto a recriar o mundo
e pecar indefinidamente o paraíso todo.
Que a luz invada a escuridão de nossos parques abandonados
onde um balanço ainda oscila nossa última passagem por ali.
Foi bem agora. Não há mais mistério algum.
Tudo brilha!
Demiurgo
a Maria Lucia Merola
Quem viu cada nova rosa surgindo no jardim?
No inesgotável e árido jardim:
talismã de se viver
cada espinho colhido pelo tempo,
cada métrica de quando ainda não havia versos
e toda a espera de anos era por uma colheita sem fim.
A chuva medida em milímetros cúbicos
e o amor à velocidade da corrente sanguínea
movendo-se por diferenças de pressão...
Virga que não chegou a ser propriamente chuva
mas inerentemente água,
insubstancial e ocorrendo ainda assim
como eco em miragem de sons e gongos:
negra liturgia.
Quem ouviu todas as flores
como um demiurgo apaixonado pelo belo
apenas pela aventura em oxigênio da invenção?
Ato falho.
Jagunço aedo sem destino algum exceto a luta
vou agora mesmo buscar uma resposta
para amortecer as travas do silêncio
e recomeçar como brinquedo de corda que jamais parasse
esquecido numa esquina qualquer de universo
sem sinal algum de transeuntes no farol:
Quem viu cada rosa surgida no jardim?
Concisamente o belo, o efêmero e a intransitável
passagem para uma nova estação...
Breve suspiro de cor que a seiva trouxe
para expressar hermética e silenciosa
a voz negra do seio da terra cantando seu húmus
em uníssono de flor.
Numa região de aridez cáustica o suficiente
para calar a voz que desertos gritam,
cultivar flores é alquimia de jardineiro mágico:
tem a dimensão dos transes dervixes,
a brevidade fugaz das aquarelas
e a imprescindível invisibilidade de um prana:
flash de corisco raio na paisagem temporal,
quando se entende a visão total em questão de segundos
e acabou-se.
A imagem indefinidamente colada nas retinas
sem verbos que a entendam.
Fosse um pássaro
voltaria aqui todos os dias
cantar indefeso esse jardim
enquanto meu voo não partisse.
Fosse aedo
inventaria mil cordéis em odisseias
sem precisão alguma de viola nessa roda
só pra ser dono do repente à minha volta
e recriar a rosa que lavrei em seus cabelos
num pretexto para a próxima primavera.
Passa ao largo uma brisa de outono
e tudo se recria em moto perpetuo ad infinitum.
Para a Via Láctea as estações são nada mais que uma célula,
sequer um átomo.
Velocidade é igual a espaço sobre tempo.
A matéria de que tratam as grandes canções
não tem fórmula, peso ou adubo.
Deus é pura velocidade.
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