sexta-feira, 19 de setembro de 2014

Sobre os itinerários das rotas e migrações



Sobre os itinerários das rotas e migrações

                                                                                a Márcia Merola


Conte qual o segredo
que você trouxe atado à sabedoria dos passos,
da poeira que a fez levitar de tantos palcos
e dos conveses e proas de tantos navios
que jamais naufragaram suas lendas
nem sequer perderam gosto e sal nos itinerários.

Conte qual o segredo
que tantas cirandas contornaram ao longo da Terra
enquanto marinheiros cantavam as rotas junto às sereias
que Ulisses trouxe emaranhadas em sonhos
de suas viagens perdidas em sete mares
e Homero prolongou febril em visões clarividentes
como um astronauta.

Cante qual o segredo
desta arena iluminada
 onde ousamos pisar quase por descuido
como um soluço perdido em sangue nos percursos
e que as pegadas dos que se foram
estamparam a ferro e fogo na lucidez dos caminhos
onde reconstruímos o agora
na suprema ousadia entre suor, lágrimas e sorrisos:
canções de sal!

Cante!
Segredos são música sem palavras,
gosto marinho que atinge a pineal
antes que lábios beijem úmidos
o ouvido dos ventos num crepúsculo sem medo.
Cante!

19.09.14



quinta-feira, 7 de agosto de 2014

Ladakh



Ladakh

Amplo, profundo, denso e leve
um amanhecer descreve raios de luz entre meus olhos.

Junto com a visão das altas montanhas
o sono do corpo derrete sua neve
perante o incêndio do sol que tudo vê.

Om de vento desmembrando brisas
que voltam exatas para um único sopro:

Um beijo em meus ouvidos.
Lábios de luz em respostas de silêncios
que jamais ousei perguntar.

Deus é uma grande onda que abraça plenamente
a razão do mar de sua sede.

Meu rio encontra amém seu Oceano num mergulho.


quarta-feira, 6 de agosto de 2014

Dharamsala




Dharamsala

Decifrar constelações em pleno dia
com a clarividência das aves que migram
guiadas pela luz do corpo...

Grandes lições calam palavras.

Falcões, corvos e pardais compartilham a mesma neblina.

O mesmo céu claro e incondicional a colibris e rapinas
denuncia um sol oculto pela névoa
que se faz presente em toda parte.

Fonte invisível, mistério insondável,
motor plácido que move planetas e homens
com a mão indistinta da eletricidade:

ecossistema impiedosamente divino
de onde surgimos e para o qual retornaremos.

Viver é cumprir uma fagulha de luz,
destino meteórico de estrela cadente.


segunda-feira, 23 de junho de 2014

O Itinerário dos pássaros





O Itinerário dos pássaros

Sempre

o canto dos pássaros

durante todo o dia

evoca um cantar

num tom mais alto

em voos rasantes,

sons de abismos

e mais distante constelação.


Abissal & Sublime.


Aerodinâmica nervosa:

precisa como trajetória de bumerangue

voltando sempre ao mesmo destino

por conhecer o truque das curvas.


Certeza de haver pássaros

mesmo sem vê-los:

a experiência de ouvir

comove visões em asas soltas.


Assim também os anjos

alertas em voos invisíveis,

por nosso fardo e jugo levitam,

e desse grito de liberdade faço meu canto ao rés do chão


Enquanto isso aprendo o gosto

de planar sobre o ar quente

sem ruflar para permanecer indivisível,

solerte sobre profundos.


Tudo asas.








quarta-feira, 18 de junho de 2014

Arpeggio



Arpeggio

                                                                                  a Fabio Crescimano


Sopros de Vayu em meus ouvidos traduzindo o impacto da paisagem,
gosto da travessia que um faro no vento
sugere olhar sempre com a novidade das lentes
em caleidoscópios.

Acordar todas as manhãs e avistar-se num quarto de espelhos:
na imagem multiplicada, um alvo real para os dardos da miragem.

Permanecer no eixo, alerta dos 360° que circundam tempestades
não tem fórmulas que apaguem exércitos de ilusões.

É preciso forjar uma espada a cada dia...

...brisa de Éolo derrubando titãs.

 (Uma criança surge numa das margens e atira seixos na água.)

Círculos concêntricos na superfície do lago
não determinam a profundidade da pedra lançada ao acaso.

Ondas continuam ad infinitum
para além das margens,
quando aquela visão tenra de sorrisos e cores infantis
já tiver se transformado em homem
e a pedra for realidade submersa esquecida num lodo de algas.

Arpejos

Maruti atravessou da Índia ao Sri Lanka num átimo
para resgatar Sita sem a pretensão de ser herói de saga alguma.

O Mahayana foi composto de ciclópicas verdades
na dimensão de células microscópicas moventes.

Linguagem.

Permanecemos com a serena perturbação
que ensinam as lendas,
desaprendendo as tabuadas e as réguas:
gênese constante.

A hora original?
Surpresa legítima
que só os ventos sabem contar de trás pra frente.






terça-feira, 6 de maio de 2014

Os Tapetes Voadores de Ahmed


Os Tapetes Voadores de Ahmed

I


Num país fantástico muito distante,

logo no começo de um verão em brasas,

Ahmed, um príncipe fervoroso

também conhecido como 'A Mesquita',

forrou os tetos de vidro de seu palácio

com todos os ricos tapetes que possuía.


Sua decisão causou a migração de centenas de mercadores

que chegaram ao reino

em busca de comercializarem com o belo monarca

um colorido sem fim de Kilins, Kazaks e Shirvans

feitos artesanalmente por uma tradição milenar.


Os súditos, por sua vez, para não tornar a vida palaciana

uma grande conferência de ruídos,

passaram a andar mais delicadamente

sobre os longos assoalhos de madeira

que percorriam toda a extensão do palácio.



II


Ao mesmo tempo,

começaram a sussurrar entre paredes

sobre a possível loucura do príncipe,

que mesmo quando cercado por toda a corte,

sentava-se em seu trono olhando na transparência do teto

o avesso dos tapetes com o deleite solar de quem adivinhasse estrelas.


Mas isso não durou muito tempo.


Certa vez, Ahmed resolveu virar os tapetes

de modo que se visse novamente o delicado colorido das lãs,

tingidas com pigmentos metálicos e terrosos

e que contavam toda uma história de tramas

e percursos geométricos sem fim em seus avessos.


Para comemorar a inversão dos desenhos

ele resolveu dar um grande baile para a corte

numa linda festa de Ano Novo.




III


Todos vestiram suas melhores roupas

e espargiram essências do oriente em seus lenços. 

O farfalhar das sedas, tules e cetins

contrapunha-se aos veludos sensuais

próprios para aquela longa noite.

Logo no início de seu perfumado baile,

Ahmed fez um brinde à beleza

e antes de tomar o primeiro gole de seu vinho embriagante,

elevou sua taça mirando as figuras delineadas em finos matizes

que se debruçavam nos vidros do teto

como num céu de outras estrelas.


Quando a orquestra do príncipe começou a tocar os primeiros acordes,

os músicos ficaram atônitos ao perceber

que todos na corte continuavam em silêncio,

com as taças intactas em suas mãos

a olhar para cima,

encantados com o que um dia

pisaram por descuido e sem zelo algum.


O príncipe sorriu comovido

e pediu que os músicos parassem.


Aos poucos, as pessoas da corte perceberam o silêncio

e começaram a se olhar profundamente

e sorriam uns para os outros,

como se jamais tivessem sido apresentados. 

Depois voltavam os olhos para o alto,

cúmplices do mesmo espírito dos astrônomos e magos

ao descobrirem uma nova constelação.


Foi então que a orquestra começou a tocar uma melodia inesquecível,

diferente de todas as outras ouvidas até então.


E eles começaram a dançar aquela música,

embalados pelo aroma dos incensos

e pelo torpor dos vinhos envelhecidos na madeira dos carvalhos.


Era como se bebessem da floresta e de seu vento

e sorriam uns para os outros... embevecidos.


Na manhã do primeiro dia

Ahmed tomou seu tapete de oração,

subiu à torre mais alta do palácio

e voou em direção à terra dos poetas itinerantes

para tornar-se um dervixe anônimo e feliz.


Os pisos do palácio 

jamais foram revestidos.







domingo, 20 de abril de 2014

Flor em teu ser...





Nada...



É possível ser flor nesta existência,
ter a consciência febril dos perfumes,
a qualidade quente e úmida da floresta
e a aceitação de cada nova estação surgindo intensa.






Lastro - Sobre o mudo vasto do mundo

Lastro

(Sobre o mudo vasto do mundo)


Somente hoje a atmosfera rarefeita dos meus verbos em transe

conjugou o tempo necessário e desconhecido 

para atravessar espaços...


Eliminei a primeira pessoa dos pronomes,

assim como perdi todos os subjuntivos.

'Nós' será sempre um novo modo a ser inventado de agora em diante.


Reticências que me conduzem ao asfalto dos caminhos em atalhos

criam a gramática própria das encruzilhadas

com a leveza dos percursos imediatos 

que prescindem de narrativas...

Não há acordos ortográficos para o despertar.


Cheguei cedo ao porto de nenhuma conclusão:

o mais possível itinerário é partir sempre.


Trouxe por isso um lastro para este barco à deriva.


Meu mar tornou-se Um junto a meu leito de rio.


Navegar hoje é conhecer incondicionalmente da foz à nascente,

viver cada passo da hidrografia

com a surpresa dos mapas em êxtases

enquanto o país interior emaranhado de estrelas

traça em terra a imitação de cada nebulosa acima.


Tempo de balés descrevendo minúcias

que jamais ousaria colocar

no mesmo compasso coreográfico das constelações.

Deus dá os mapas em favor do suor diário em corpo e alma.


Enquanto isso, na cena aberta...


Em degradé o oceano prolonga o mesmo azul do céu

sem resposta alguma das marés de porventura. 

Abrem-se as cortinas em ondas.

E os passos descrevem a rota nas areias desta tarde desde sempre

com o eco do destino sendo o fim de alguma praia desconhecida.

Nada permanece.


Meu palco hoje é transbordado: uma parede de água

onde um filme está sempre a ser projetado

para o delírio dos peixes transeuntes

em cumplicidade com os mergulhadores e o peso do escafandro:

Cruz de cada um...

Atmosfera da criação por demais rarefeita

que às vezes embriaga e às vezes é um ar que sufoca:

mas oxigênio suficiente

 para desfrutar momentos como obra divina e graça.

Paisagem submersa.


Em instantes posso vislumbrar

numa bola de cristal transparente

passado, presente e futuro pelo vidro da máscara.

O cenário sempre desmente a dramaturgia real.


Ainda assim o destino é sempre a última cartomante.

Encontro Caronte com a mesma intimidade

 de quem adentrasse uma tenda disposta ao acaso

 numa tarde de circo em dia de domingo.

Por desmerecimento geográfico a cena é única,

tudo acontece num átimo de amarelinhas entre céu/inferno.

A alma da fantasia tornou-se meu mapa.

Minhas roupas são as flores

 que colhi nesta manhã de nudez suprema

com o jardim ainda molhado pela neblina.


Tudo está por ser recriado a todo instante.


                                                                        

segunda-feira, 10 de março de 2014

Tiberíades



Tiberíades

                                                                             a meu Pai

Porque eis que se pode dizer com toda verdade:

um é o que semeia, outro é o que ceifa.

Enviei-vos a ceifar onde não tendes trabalhado;

outros trabalharam, e vós entrastes nos seus trabalhos.”

João 4, 37-38


As flores de mostarda eram um tapete tênue sob o velho carvalho.


Sua dignidade solitária naquele campo em Oregon House

surgia soberana em sonhos amarelos de Van Gogh

num mês de Abril.


Puro delírio...


Beith El comparou o grão de mostarda ao Reino dos Céus

na mais estreita parábola que ensinou aos homens. (Mat 13, 31)


Pelos prados e colinas, sua voz vibrava

como os cantos dos pássaros

que alimentam o espírito.

Ainda que sem testemunhas de seus voos

ou da visão fantástica de suas cores e matizes

a revelar o ton sur ton

das notas musicais entre as folhagens,

a melodia dos passarinhos

se faz presente e exata a olhos invisíveis.


E as asas de Yassu estavam o tempo todo ao nosso redor

num abrigo de abraços em ninhos internos

com o ar de todo o vale tragado em fôlegos rasantes!

Tudo ao mesmo tempo...


Assim como os anjos no sonho de Jacó

no degradée

do mesmo subir e descer,

o caminho é único entre Céus e Terra:

não há contramão.


No milagre

da multiplicação

os deuses trazem a fome com o pão embaixo do braço.

                                                                   Ein Karem 10.03.14