segunda-feira, 30 de março de 2015

Matita Perê



Matita Perê

Era uma vez uma amarelinha sem inferno.


Ia-se de um céu a outro sem qualquer intenção de limites

ou asas que valessem uma distância entreaberta.


Todo final de tarde

os sacis recolhiam os números dispostos ao acaso

e formavam alguma cabala para que pudessem brincar à noite

contando um mar de estrelas pelo asfalto

antes que as velhas negras os chamassem de volta

para dormir ao relento.


Havia um tempo em que nada era remoto,

a felicidade cabia exata no aro de uma bicicleta

e as notícias do mundo vinham frescas

através do quadro-negro.


Quando inventaram os binóculos para a eternidade

os homens da lei disseram que aquele era um pretexto

para a negação arbitrária da paisagem

e mantiveram seu culto à miopia

que também condenava voluptuosamente

a sexualidade sutil e íntima dos microscópios.


Vertigem.


No entanto, a vida virtual lhes coube melhor que uma luva

ainda que fossem cegos conduzindo outros cegos

e tendo o interior de uma miragem como cenário

a esconder a lava prestes de um vulcão.


Aqui

a perspectiva da floresta dispensa telescópios

porque se agasalha sob o teto da noite negra

onde não há sombra de hierarquia entre os bichos

e um reflexo de lua é só mais um corpo celeste

refletido no lago onde as rãs cantam modestamente

num mesmo uníssono sem precisão de maestros.


Era uma vez uma amarelinha sem inferno.


O que acontecia entre um céu e outro

era costurado feito uma colcha de retalhos

onde cabia o mundo todo e mais um pouco.


Assim a disciplina dos calendários

foi definitivamente extinta

e viver transformou-se numa forma criativa e magnética

de enfrentar o luar com os mesmos olhos abertos

de um pássaro noturno.





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