domingo, 16 de junho de 2013

A Lei da Gravidade não rege o voo dos anjos

   


                                                               
                                                        a Maria Lúcia Merola

Os Cantos


I

Os deuses, que traçam o caminho

através da nossa dificuldade em percorrê-lo, 

são pontos de luz inseridos nos mapas da eternidade.


Medidas que nossos cálculos não preveem,

intensidades que nosso padrão não alcança

para entender de braços abertos

que o coração deste peito 

ainda não aprendeu a dor de bater sorrindo.


O ritmo que determina a distância

entre nós e os anjos

pode ser apenas

uma fração amarga

no doce movimento das estrelas.



II

Pão

                                 a Ora Goldfriend

A fome que me encontra hoje

não é mais um jejum sublimado e voluntário

ou herança legada pela espécie humana

como recurso que me justifique estar vivo.


Minha fome hoje busca um pão pelo deserto interno

onde o milagre de encontrá-lo

seja a resposta ao sacrifício da procura

e a compreensão íntima dessa graça

permita enfim que ele se multiplique.



III

Se luzes mágicas tocam a noite do amanhecer,

olhos noturnos, cegos por tanta luz, negam o dia.


Depois, o elo que conduz os fantasmas

do nosso castelo interior será incinerado lentamente,

varrido com rastros que não levaram a lugar algum de nós,

os ausentes de sol, em quem a direção apenas prevê limites

e o coração saturado oscila entre o desejo e o sono.


Quando luzes mágicas tocarem a noite do amanhecer,

o tempo denunciará em sopranos que estivemos atribuindo

a mecanicidade caduca dos relógios

à alegria viva e giratória dos parques,

acreditando em escadas que conduziam a precipícios,

investindo lúdicos nas asas que havíamos construído em sonhos

em meio à tirania da selva.

As feras não medem distâncias

e acreditam ser a mesma

a areia dos desertos e das praias.


Dúbias, rugem debaixo do sol suportando voos de cera

enquanto bélicos, doces e alados, indomáveis pela conquista

os arcanjos insultam o pânico das jaulas em plena batalha.


Entre a vertigem do ar

e a abdicação completa das asas

nossos pássaros roubam-se indecisos

perante a miragem do voo

e a conquista silenciosa do ar

subvertendo rápido a estreita condição

de serem também belas feras emplumadas.


Aprenderão a sagrada ousadia das uvas

destilando melhor o vinho do seu sacrifício

para o ácido vinagre dos tempos?


Resta-lhes como resgate, o canto.

A grande possibilidade fugaz

porém eterna, se lembrada.


E que tal canto discorra então

sobre a longa trajetória que o trouxe

do seio escuro da terra como semente

à agonia e êxtase de ser flor um dia,

à sublime condição de ser todo o jardim

traduzido numa única pétala

à luz enfim que lhe dá brilho

e imprime a forma pela qual a lemos viva,

sublime, alheia a praias, desertos ou canções:

mágica luz, flor por um dia!


E se luzes mágicas tocam o dia de amanhecer...

Mágica luz! Mágica luz!

Flor de todos os dias!



IV

A urgência do circo

impede que saibamos o script de antemão.

Além disso é necessário levantar a lona,

dispor cadeiras, preparar o sorriso do palhaço

e compreender também que nem sempre é tempo de aplausos

mesmo porque os papéis são muitos e faltam atores nessa troupe.


É então

que o domador de feras

vê-se equilibrista, mágico e acrobata

e a velocidade inadiável do espetáculo

exige sempre o melhor de seu desempenho.


Quando ele abre seus olhos azuis pintados

o circo está vazio e os ursos já foram dormir.

Olhando para o alto, a lona azul do teto é um céu de estrelas

costurado de sereno.



V

O caminho, que também é feito de desertos

me diz que eles são escaldantes e muitos.


E por mais enfática

que seduzindo a febre afirme,

miragens nunca serão oásis de verdade.



VI

O Itinerário de Ariel


Por rumos que se confundam

jamais se definam.

Nunca determinar o itinerário em xeque-mate

como quem já conhece o fim.


Sobretudo

o mar quer que se continue assim:

Eleitos do naufrágio

fomos nós, os poucos sobreviventes,

dar à Praia da Conquista.


Era a vida.

E nós, quase abissais

contemplamos então nos olhos uns dos outros

o mesmo ar que se respira em conjunto

quando somos

nada mais

que réus absolutos do mesmo sono.



VII

Ouvir de braços abertos

a canção meteórica das estrelas

pode custar a dor

de nossas máscaras caindo

pela larga extensão

do sorriso

em silêncio

que o estreito alcance delas

aos ruídos

não comporta



VIII

E então o silêncio prevalece sobre os dias,

passam-se anos e qualquer definição ainda será um limite

à concessão elétrica e muda da manhã que surge infinda

transformando o pavor trôpego no puro ritmo a devorar espaços

que existe nos balanços e no coração que oscila:

Pêndulos em parques diferentes...



IX

De Rerum Natura

                                                 a William Blake

I

Dizia uma alta montanha:

- Pacto de solidão que não fiz,

a que propósito serve

a febre incomum de indivíduo

que abrange toda a floresta de que sou feita?


E pelas suas lâminas cortantes de seda

o vento respondia em seu hálito gelado

no farfalhar das grandes árvores:

- O sentimento que ninguém vê!


E uma das grandes árvores

no limiar de sua terceira vida, perguntava:

- Que história meu ser abriga

de semente tão distante

se passos a percorrer em fábulas

não se pronunciam em minhas raízes?

A terra que em acalanto dormia

levantou sua voz de húmus

e solene cantou por entre o musgo:

O nascimento e a morte

que são tua herança guardada em mim:

Teu berço e teu túmulo!


II

A verdejar na floresta

um pássaro branco pousado

ouviu o final da canção

e quis da terra saber

qual o segredo do voo.


E a terra outra vez cantou

através de seus lábios de lama:


Sou largo útero para o fundo

e cumpro cega gestação

de minerais e cigarras.

Por vezes me sinto redonda

e é remota essa lembrança

parece uma gravidez constante

que nunca encontra a resposta de um parto

Intuo rios em meus sonhos...

sei de um mar louco e embriagado

porque um latejar salgado me indispõe

e é um sabor meu que trago de outro lugar

pulsando bravio neste ventre negro.

Nada sei da arte do voo,

pois não sou vento.


III

Mas posso contar que uma tarde

um outro pássaro veio

trazendo um fruto encontrado

que caiu de seu bico amarelo

e que hoje é a árvore de três vidas

que não sabe de onde veio.


Muitas outras primaveras

e outros pássaros voaram

até que um ninho fosse feito.


De dois ovos azuis pintados

um, as serpentes comeram

o outro, indaga segredos

de mistérios dos quais não me componho.


Quanto à montanha,

se esquecesse a metafísica

de sua imponente altura

sentiria que em seu íntimo

há uma cidade soterrada

e um mapa claustrofóbico e imóvel

está impresso em camadas geológicas

mais reais, embora inertes,

que sua pretensa solidão

Volto a dormir, antes que para vocês

o infortúnio,

faça de mim

um vulcão!



X

A Mandala e o Vitral

                                                              a Jalaluddin Rumi


Busquei a métrica de cada cor

para enjaular o sol através dos vidros

no piso gelado da minha catedral sem teto


Tarde da noite

o céu era uma realidade entrevista

pelas paredes nuas

e a lua infiltrava-se em brilhos azulados

cumprindo sua trajetória de sol noturno

em zodíaco de pedra


Encontrei

num rastro de luz que alcancei fugaz

estilhaços vermelhos e amarelos

que aos cacos

descreviam histórias, ilíadas,

apontando o círculo das direções

em minhas janelas entreabertas

e me vi também ali

escrevendo este poema para os deuses

de frente para a eternidade

nu e destemido

livre, numa oração sem palavras

de mãos postas e braços abertos:

anjo sem tempo



XI

Preparação para Fênix


Partiu-se o espelho em vários outros

e sua imagem remota despiu-se de reflexos

Não há sombras que me tragam medo

Aprendi com o sol as consequências da luz

e engulo a seco minha sede de mim

enquanto filtro o sal que me queima

para celebrar em substâncias próprias

um fermento interno que me traga o pão

O fogo interno que consome as horas

é o mesmo que agora em milagres me alimenta



XII

Voo


O jardim encantado de sombras

cede espaço à liberdade das flores.


Sua partida para o Éden,

trouxe o reparo das minhas asas.



XIII

Noto


O vento gelado do inverno aponta para dentro

como só sabem ser esses dias frios.


Minha sina das facas à poesia,

meu momento neutro em meio ao dia

que cumpro como um ritual que arde,

queima às vezes, e corta.


Mas não impede que os sinos mais próximos

repiquem acesos a hora e o silêncio.


A esmo é que não saio.

Este ano o carnaval será dentro do meu quarto.

Serei Pierrô, Arlequim e Colombina!

Um samba enredo costurado dia após dia

com a bainha desfeita pelo gasto na avenida.


Tento falar dos ventos e são minhas tempestades o que trago à risca,

bebo labaredas enquanto um traço de velocidade

me impede torto que eu veja a pista.

Saio cedo enquanto ainda há estrelas

e cozinho para a cidade fria, embora minha fome maior

fosse envenenar o mundo em alcaloides.


Porventura meu desejo é degustar poetas e pinturas,

brindar num carrossel mais um destino que um começo

de evidência tão pitoresca quanto o coreto de uma praça.

Ainda pertenço, sim, à estrutura da massa.


Como padeiro, tenho hora para ser dono da rua

e me calo quando saem os pães.


Quando chove muito, a umidade relativa do ar

compromete a levedura. É preciso estar sempre atento.


A princípio tudo aparece em branco e preto

mas com o tempo, o forno começa a contar seus segredos

e ainda que as respostas deem seus naipes em pálidos matizes

novas cores terminam sempre num arco-íris sobre os edifícios.


E além da aparente e casual neblina muitas vezes

devo confessar impune e num travo de felicidade

...que estranhos perfumes me perseguem.




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