Os Cantos
I
Os deuses, que traçam o caminho
através da nossa dificuldade em percorrê-lo,
são pontos de luz inseridos nos mapas da eternidade.
Medidas que nossos cálculos não preveem,
intensidades que nosso padrão não alcança
para entender de braços abertos
que o coração deste peito
ainda não aprendeu a dor de bater sorrindo.
O ritmo que determina a distância
entre nós e os anjos
pode ser apenas
uma fração amarga
no doce movimento das estrelas.
II
Pão
a Ora Goldfriend
A fome que me encontra hoje
não é mais um jejum sublimado e voluntário
ou herança legada pela espécie humana
como recurso que me justifique estar vivo.
Minha fome hoje busca um pão pelo deserto interno
onde o milagre de encontrá-lo
seja a resposta ao sacrifício da procura
e a compreensão íntima dessa graça
permita enfim que ele se multiplique.
III
Se luzes mágicas tocam a noite do amanhecer,
olhos noturnos, cegos por tanta luz, negam o dia.
Depois, o elo que conduz os fantasmas
do nosso castelo interior será incinerado lentamente,
varrido com rastros que não levaram a lugar algum de nós,
os ausentes de sol, em quem a direção apenas prevê limites
e o coração saturado oscila entre o desejo e o sono.
Quando luzes mágicas tocarem a noite do amanhecer,
o tempo denunciará em sopranos que estivemos atribuindo
a mecanicidade caduca dos relógios
à alegria viva e giratória dos parques,
acreditando em escadas que conduziam a precipícios,
investindo lúdicos nas asas que havíamos construído em sonhos
em meio à tirania da selva.
As feras não medem distâncias
e acreditam ser a mesma
a areia dos desertos e das praias.
Dúbias, rugem debaixo do sol suportando voos de cera
enquanto bélicos, doces e alados, indomáveis pela conquista
os arcanjos insultam o pânico das jaulas em plena batalha.
Entre a vertigem do ar
e a abdicação completa das asas
nossos pássaros roubam-se indecisos
perante a miragem do voo
e a conquista silenciosa do ar
subvertendo rápido a estreita condição
de serem também belas feras emplumadas.
Aprenderão a sagrada ousadia das uvas
destilando melhor o vinho do seu sacrifício
para o ácido vinagre dos tempos?
Resta-lhes como resgate, o canto.
A grande possibilidade fugaz
porém eterna, se lembrada.
E que tal canto discorra então
sobre a longa trajetória que o trouxe
do seio escuro da terra como semente
à agonia e êxtase de ser flor um dia,
à sublime condição de ser todo o jardim
traduzido numa única pétala
à luz enfim que lhe dá brilho
e imprime a forma pela qual a lemos viva,
sublime, alheia a praias, desertos ou canções:
mágica luz, flor por um dia!
E se luzes mágicas tocam o dia de amanhecer...
Mágica luz! Mágica luz!
Flor de todos os dias!
IV
A urgência do circo
impede que saibamos o script de antemão.
Além disso é necessário levantar a lona,
dispor cadeiras, preparar o sorriso do palhaço
e compreender também que nem sempre é tempo de aplausos
mesmo porque os papéis são muitos e faltam atores nessa troupe.
É então
que o domador de feras
vê-se equilibrista, mágico e acrobata
e a velocidade inadiável do espetáculo
exige sempre o melhor de seu desempenho.
Quando ele abre seus olhos azuis pintados
o circo está vazio e os ursos já foram dormir.
Olhando para o alto, a lona azul do teto é um céu de estrelas
costurado de sereno.
V
O caminho, que também é feito de desertos
me diz que eles são escaldantes e muitos.
E por mais enfática
que seduzindo a febre afirme,
miragens nunca serão oásis de verdade.
VI
O Itinerário de Ariel
Por rumos que se confundam
jamais se definam.
Nunca determinar o itinerário em xeque-mate
como quem já conhece o fim.
Sobretudo
o mar quer que se continue assim:
Eleitos do naufrágio
fomos nós, os poucos sobreviventes,
dar à Praia da Conquista.
Era a vida.
E nós, quase abissais
contemplamos então nos olhos uns dos outros
o mesmo ar que se respira em conjunto
quando somos
nada mais
que réus absolutos do mesmo sono.
VII
Ouvir de braços abertos
a canção meteórica das estrelas
pode custar a dor
de nossas máscaras caindo
pela larga extensão
do sorriso
em silêncio
que o estreito alcance delas
aos ruídos
não comporta
VIII
E então o silêncio prevalece sobre os dias,
passam-se anos e qualquer definição ainda será um limite
à concessão elétrica e muda da manhã que surge infinda
transformando o pavor trôpego no puro ritmo a devorar espaços
que existe nos balanços e no coração que oscila:
Pêndulos em parques diferentes...
IX
De Rerum Natura
a William Blake
I
Dizia uma alta montanha:
- Pacto de solidão que não fiz,
a que propósito serve
a febre incomum de indivíduo
que abrange toda a floresta de que sou feita?
E pelas suas lâminas cortantes de seda
o vento respondia em seu hálito gelado
no farfalhar das grandes árvores:
- O sentimento que ninguém vê!
E uma das grandes árvores
no limiar de sua terceira vida, perguntava:
- Que história meu ser abriga
de semente tão distante
se passos a percorrer em fábulas
não se pronunciam em minhas raízes?
A terra que em acalanto dormia
levantou sua voz de húmus
e solene cantou por entre o musgo:
– O nascimento e a morte
que são tua herança guardada em mim:
Teu berço e teu túmulo!
II
A verdejar na floresta
um pássaro branco pousado
ouviu o final da canção
e quis da terra saber
qual o segredo do voo.
E a terra outra vez cantou
através de seus lábios de lama:
Sou largo útero para o fundo
e cumpro cega gestação
de minerais e cigarras.
Por vezes me sinto redonda
e é remota essa lembrança
parece uma gravidez constante
que nunca encontra a resposta de um parto
Intuo rios em meus sonhos...
sei de um mar louco e embriagado
porque um latejar salgado me indispõe
e é um sabor meu que trago de outro lugar
pulsando bravio neste ventre negro.
Nada sei da arte do voo,
pois não sou vento.
III
Mas posso contar que uma tarde
um outro pássaro veio
trazendo um fruto encontrado
que caiu de seu bico amarelo
e que hoje é a árvore de três vidas
que não sabe de onde veio.
Muitas outras primaveras
e outros pássaros voaram
até que um ninho fosse feito.
De dois ovos azuis pintados
um, as serpentes comeram
o outro, indaga segredos
de mistérios dos quais não me componho.
Quanto à montanha,
se esquecesse a metafísica
de sua imponente altura
sentiria que em seu íntimo
há uma cidade soterrada
e um mapa claustrofóbico e imóvel
está impresso em camadas geológicas
mais reais, embora inertes,
que sua pretensa solidão
Volto a dormir, antes que para vocês
o infortúnio,
faça de mim
um vulcão!
X
A Mandala e o Vitral
a Jalaluddin Rumi
Busquei a métrica de cada cor
para enjaular o sol através dos vidros
no piso gelado da minha catedral sem teto
Tarde da noite
o céu era uma realidade entrevista
pelas paredes nuas
e a lua infiltrava-se em brilhos azulados
cumprindo sua trajetória de sol noturno
em zodíaco de pedra
Encontrei
num rastro de luz que alcancei fugaz
estilhaços vermelhos e amarelos
que aos cacos
descreviam histórias, ilíadas,
apontando o círculo das direções
em minhas janelas entreabertas
e me vi também ali
escrevendo este poema para os deuses
de frente para a eternidade
nu e destemido
livre, numa oração sem palavras
de mãos postas e braços abertos:
anjo sem tempo
XI
Preparação para Fênix
Partiu-se o espelho em vários outros
e sua imagem remota despiu-se de reflexos
Não há sombras que me tragam medo
Aprendi com o sol as consequências da luz
e engulo a seco minha sede de mim
enquanto filtro o sal que me queima
para celebrar em substâncias próprias
um fermento interno que me traga o pão
O fogo interno que consome as horas
é o mesmo que agora em milagres me alimenta
XII
Voo
O jardim encantado de sombras
cede espaço à liberdade das flores.
Sua partida para o Éden,
trouxe o reparo das minhas asas.
XIII
Noto
O vento gelado do inverno aponta para dentro
como só sabem ser esses dias frios.
Minha sina das facas à poesia,
meu momento neutro em meio ao dia
que cumpro como um ritual que arde,
queima às vezes, e corta.
Mas não impede que os sinos mais próximos
repiquem acesos a hora e o silêncio.
A esmo é que não saio.
Este ano o carnaval será dentro do meu quarto.
Serei Pierrô, Arlequim e Colombina!
Um samba enredo costurado dia após dia
com a bainha desfeita pelo gasto na avenida.
Tento falar dos ventos e são minhas tempestades o que trago à risca,
bebo labaredas enquanto um traço de velocidade
me impede torto que eu veja a pista.
Saio cedo enquanto ainda há estrelas
e cozinho para a cidade fria, embora minha fome maior
fosse envenenar o mundo em alcaloides.
Porventura meu desejo é degustar poetas e pinturas,
brindar num carrossel mais um destino que um começo
de evidência tão pitoresca quanto o coreto de uma praça.
Ainda pertenço, sim, à estrutura da massa.
Como padeiro, tenho hora para ser dono da rua
e me calo quando saem os pães.
Quando chove muito, a umidade relativa do ar
compromete a levedura. É preciso estar sempre atento.
A princípio tudo aparece em branco e preto
mas com o tempo, o forno começa a contar seus segredos
e ainda que as respostas deem seus naipes em pálidos matizes
novas cores terminam sempre num arco-íris sobre os edifícios.
E além da aparente e casual neblina muitas vezes
devo confessar impune e num travo de felicidade
...que estranhos perfumes me perseguem.
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