Recurso
Repousam no meu peito
duas mãos postas em oração de segredo.
E o ar rarefeito das atmosferas em transe
traga o sublime numa fração de segundos.
Anjo que traduz nas entrelinhas
revela agora a trama de tantos verbos sem rima!
Revela o amanhecer em nós,
o alvorecer de cada momento,
a conversão de toda a primavera
na flor mais doce
na flor mais simples
do jardim que plantei um dia
por descuido, por certezas
de que as sementes gerariam versos
e alimentariam a sagacidade dos pássaros
decididos a voar para bem longe
muito além de onde o ruído da matilha
pudesse alcançar o fugaz abstraído das nuvens.
Nome aos Bois
A ferro e fogo
tenho impresso pegadas
e farejado pistas por onde passo
Mas nada posso predizer
com as marcas pelo avesso
Não se pode trilhar a esmo
o percurso que as estrelas nos deram
num destino em fogo olímpico aceitado
O preço desse itinerário
é conseguir acender o vulcão adormecido
e esperar serenamente o próximo porto
para depois acenar adeus às sereias que encantam
e pisar terra firme em pleno voo
A linha vertical do tempo
O segredo não está no solo mas no espelho
e mesmo nele, o que é esquerdo vai do direito
e a gente acaba sempre numa contramão
costurada pela pista do tempo,
vestindo pierrots em arlequins convertidos.
Risos de soslaio...
Era uma vez um baile de pervertidos
seguindo os passos como numa canção
até que tudo virou nada, não se sabia se tango ou duelo.
O fato é que ele cometeu rumos contrários
e ela entrou sozinha numa canção
permanecendo louca nos estribilhos,
bebendo do refrão como num eterno retorno
repetindo a musa que sempre fora
num destino sem eira nem beira
Assim, transformei as tramas desse enredo:
Era uma vez
um baile de pervertidos
seguindo os passos como numa toada.
Ele, virou a música que ela gostava.
Ela, é claro, entrou de cabeça na canção.
Emblema
Recursos do meu peito
escondidos numa paleta;
as cores à mostra mas lá dentro, nos sobretons.
Vozes que se levantam
muitas vezes pelo avesso,
o sempre avesso!
Qual canção então poderia cantar
para um novo inverno?
Invento um mote:
Se a face mecânica das horas vacilar,
faço um inferno!
Subo então direto para o céu
sem perspectiva alguma de ascensorista.
Teorema
Um dia meu Príncipe virá,
uma brisa em seus cabelos,
o universo no seu corpo
e um beijo prolongado de despertar
após um sono de mil fábulas.
Então todas as noites serão dias
e a eternidade repousará todas as manhãs
emergindo sublime na luz brilhante dos seus olhos.
No Paraíso ao lado
um Buda sorri quieto
de todas essas histórias
(segredo vivido de não se contar)
Histórias contadas
Alguém filtra as notícias que a rua grita.
Sou apenas mais um que não eu mesmo
procurando a esmo um rosto no espelho
- intimidade em efeito de reflexos.
Raios partam enfim esse sortilégio
e fixem sua luz dilapidante
para que um mínimo sorriso
possa contar de toda dor do circo movente
e do resgate providencial do palhaço.
Antes não havia nada.
Agora em cada velha esquina
surge um anjo itinerante
(e ele sempre esteve ali).
Sou apenas mais um rosto
que não eu mesmo.
Mas a voz desse palhaço
que ouço em noites de chuva
como o trompete de Miles Davis, conta tudo.
Então eu tento de tudo,
provo de todas as receitas para ser feliz sem perder o ponto.
Um dia prometo que conto
todas as estrelas do céu
só pra depois enfeitar o circo com elas
feito um bolo de amor e chuva de se comer aos poucos.
Romance
a Ora Goldfriend
A valsa do nosso encontro
surgiu numa despedida
num baile de máscaras
onde ficamos nus no final
eu e você
dançando alheios à paranoia dos espelhos
correndo o salão como numa pista de gelo
E a orquestra tornou-se então
junto do nosso Amor
sua própria música e quem
E já não éramos então nós mesmos
Em uníssono
fizemos do nosso sonho o próprio baile
e da noite que corria solta
o universo que simplesmente brincava ao nosso redor
sem o peso das catracas,
sem a gravidade das sombras
Termo
Vestir o casaco de ovelha negra
como quem pressentisse um fim.
O mar desta vez
mais perto do naufrágio!
As bússolas, todas ao contrário
não esclarecem a hora e a passagem
e o degredo continua a ser sempre
o porto mais próximo de nenhuma conclusão.
Vestir a aventura sensível
através da neblina
sem ocupar os binóculos do tempo
nem omitir as tempestades à risca.
A busca do segredo muda
enquanto ele permanece o mesmo.
Não há faróis em alto-mar.
Tudo brilha.
O nível de uma certa nudez
Faltam-me os verbos
e o registro dos sonhos conjugados.
Trouxe por isso
esta tarde possível entre meus dedos
neste brinquedo que entardece uma dose do poema.
A poesia por um breve momento mais vivida do que escrita.
O pequeno milagre da invenção
suplanta em milênios os degraus obtusos da Torre de Babel.
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