Alfa
Além do universo visível
reside a memória dos deuses,
pérolas a quem servimos
ainda como o rude das ostras.
Visão
Quando eu finalmente beijar meus espelhos
sem que a miragem quebre-se em meus lábios
saberei que será a hora da neve cobrir
as pegadas deixadas pelo acaso sem tempo.
Haverá um paraíso em cada olho
e o alcance deles, aos meteoros
suplantará em brilho o incômodo estático
de qualquer resquício ou qualquer inferno
que porventura possa ter construído
em delírios ou sonhos.
Raga
Beijamos o céu
enquanto nossas bocas ainda cantam
o arado entre dentes da última colheita
e o trigo amarga lêvedo seu futuro de pão entre as estrelas.
Na rotunda brinca um sorriso pintado de cenário
e das coxias
– ainda que às plateias famintas seu texto não atenda –
Deus sussurra breves canções de êxtase
falando do significado dos mundos: maná plausível!
Não há noite, tarde ou dia
nem quem atue ou assista.
Regras mecânicas cumprem
vagando espirais da eternidade
sua rota a nos impor limites e chão.
Que a revelação de um amanhecer redentor nos atravesse!
Invadam finalmente as crianças
os parques abandonados onde já brincamos um dia
e que o ranger dos balanços agora
coincida com uma revoada de pássaros livres.
Assim, a fúria dos deuses implacáveis
irá ninar os vampiros
para depois decepá-los em seus leitos de morte
Então surgirá Adlux e sua legião de arcanjos
para cantar durante o pesadelo
e brincar com as crianças
transformando o pavor trôpego
no puro ritmo a devorar espaços
que existe nos balanços e no coração que oscila.
A referência é um pêndulo;
Permitam jardins ao redor das indústrias e automóveis!
depois, e só depois, quebrem todos os relógios!
A Fonte dos Desejos
Adônis me conduzia
e, buscador ingênuo, cheguei enfim
à Fonte dos Desejos
e pedi meu antigo rosto.
"Qual deles?" perguntou-me a voz da fronte
de ser humano e de ser água
da voz da Fonte.
Traga de volta o mais belo,
o da primeira juventude!
"Não seria esse o mais belo.
Se o mais belo é o que pediste
não é ele o dessa idade.
Queres, dentre todos, aquele
que em realidade é o mais belo?"
Sim, respondi, eu quero!
"Pois olha teu rosto na Fonte e vê:
que o teu mais belo rosto é este:
o de hoje,
cujo sopro anima o presente
que agora sustentas
a esta parte do teu próprio tempo
como ser na Terra.
Beija, pois, tua fronte
e celebra
a tua vida
o teu destino
que aqui te trouxe
a ouvir teus desejos na Fonte.
Beija. Beija tua própria boca na água da Fonte!"
Epithalamium
Poderia compor uma canção neste momento
para que o lirismo transformasse a justiça dos deuses
numa moldura confortável.
Mas a sede de ser humano e de ser tosco
me encontra aqui, impávido perante o alto
mergulhado no limite do que compreendo.
Tudo o que sei é o que vivo, quando muito!
E minhas verdades não sustentam sua gramatura na balança
porque não sou, não estou, não comporto.
Pesa um estreito mas ainda há amplitudes e relevos em minhas pinturas.
Às vezes vou até o mar e os ventos trazem consolo
Mas jamais ecoam a voz dos que se foram.
As conchas são monocórdios e o mar não conforta.
Então começo tudo outra vez em branco
compondo novas canções para amigos que continuam partindo
príapo impotente perante urgência de prazer e despedidas,
encomendando pincéis junto ao próximo entardecer
enquanto os jornais imprimem a vida em preto e branco todos os dias,
cantando as musas durante o pesadelo para honrar as horas de batalha,
todas elas, da que se faz pelo pão cotidiano
à que se é pelo pão da vida consubstancial.
Nem uma vírgula vã!
Do Porto e suas Vozes
Todos os adeuses traduzem palavras não proferidas,
mensagens que os oceanos não souberam guardar do eco das ondas,
as conchas não puderam repetir às crianças que brincavam na praia
e aves do entardecer consideraram um capricho
escrito nas areias rosadas de um verão.
Distante dos que ama e que no porto o esperam,
guarde dentro de sua bagagem cigana e hermética
um livro de poemas para ler ao acaso e sem tempo,
mais perto do universo em expansão que de sua cama,
mais eloquente em presságios que os oráculos de Delfos em acertos,
alegre por considerar a trajetória dos voos dos aeroplanos
um reflexo cósmico das gaivotas em transe e mais nada.
Um coração magnífico ri seus internos
enquanto o tempo costura meias de viagem quase por descuido
e outros seguem o compasso do relógio
no mesmo ritmo que o coração impávido suporta a violência dos ponteiros,
como o poeta negro Edu Natureza
escreveu um dia nas paredes de um viaduto.
Mas se sua alma for livre e isenta,
alheia a aeroportos ou canções de despedida,
então sim a luz falará por si mesma,
solta como alguém que esperasse amanhecer no mar
indiferente aos navios e seus tamanhos,
encantada com o brilho e humildade absoluta das estrelas
que ainda estivessem ali…
Silêncio. É a vez do sol no poema.
Ode a Walt Whitman
Do meu pequeno quarto uma janela abre-se para o mundo
e contemplo livre o sabor de uma nova estação
na dimensão sonora e reverberante de uma tarde de domingo.
Crianças brincando perto e um cão latindo ao longe,
aviões que porventura passam e fogos de artifício celebrando alguma vitória
porque isto é o que está à minha frente:
A paisagem de um recanto qualquer numa cidade do Brasil
um dia antes do aniversário de Walt Whitman.
E daqui, sem o alarde dos fogos,
quero também celebrar minha vitória sobre mim mesmo
cantar o prazer de ouvir os sons mais usuais
com ouvidos atentos de quem descobrisse
a graça da chuva caindo sobre as folhas
mas de uma forma que ainda tivesse surpresa e impacto
como no primeiro dia dos mundos recém criados por Deus.
A vida que passa pode ter um encanto oculto por trás da cena,
das notícias do mundo ao barulho dos vizinhos
dos freios dos automóveis a uma criança que chora sabe-se lá onde.
Que a bruxa se entretenha com seus próprios caldeirões!
Olhemos a estrada com olhos de fada madrinha!
Então a varinha de condão poderá ser de utilidade e valia
e o caminho será fartamente coberto pelas flores
lembrando Delos, no dia do nascimento do deus Apolo.
Assim como Leto, a de áureas tranças, depois de tantas tempestades,
poderemos reconhecer finalmente que o propósito da vida
é enobrecer a poesia e evocar o divino.
E poderemos nós também gerar os deuses gêmeos.
Só o sagrado conta, assim como a alma,
que é tudo o que se perpetua
e este momento, que é tudo de que dispomos.
Só o sagrado em nós permanece.
Esfinge
Com um sorriso que ri para dentro
sigo estradas que me levam onde sequer planejei.
Como quem voasse em círculos ao entardecer
rio para dentro quando penso na amplitude de céus por conquistar
e os círculos de voo transformam-se em espirais ascendentes
na direção de todos os paraísos e pássaros que desconheço.
Eu não teria a sabedoria dos arquitetos
para planejar a pavimentação das ruas
que a simplicidade dos anjos em curso agora me aponta
em pedrinhas de brilhantes
nem teria também a consistência dos alicerces
ou a leveza inenarrável dos aeroplanos
para manter a trajetória dos aeroportos em transe.
Meu destino é não saber a cor da próxima manhã
e ainda assim esperar por um sol que seja claro
para brilhar no céu do meu país interior.
Sei que o alimento que porventura me atende
contém a receita intransponível do segredo
e não tenho como plantá-lo eu mesmo:
ele cai do céu como um maná que as estrelas concedem
e milhões de outras galáxias ordenam.
Voar me sustenta ao mesmo tempo que me apavora.
Sigo avante porque meu destino pássaro me trouxe
e voar é a condição daqueles que são alados pela conquista
onde a decolagem se faz ao sabor de uma canção.
Ômega
Atrás das pilastras do tempo
reside um deus cego e surdo
alimentado a migalhas e água de chuva.
Por vezes sua voz insurge-se do branco dos mármores
e ele canta alguma saga que ouviu contar
em seus sonhos de almirante.
Meus soldados ainda não aprenderam
essa linguagem de pedra
porque não sabem que são mudos.
Algum dia, após muitos dilúvios
as cidras serão maceradas em vinhos embriagantes
e Deméter trará sua colheita de trigo
distribuindo pães entre personagens famintos.
Será um sinal da formação rija
de um exército quixote
a conquistar enciclopédias adentro
loucos moinhos de vento e girassóis ao sol.
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